Legado colorido de Ivald Granato é celebrado em mostra em SP
Exposição prova que, para além de agitador performático e amigo de famosos, brasileiro foi um grande pintor

Num castelo no sul da Alemanha, em meados dos anos 1980, o brasileiro Ivald Granato (1949-2016) fez muita arte — em mais de um sentido. A residência de 500 cômodos do século XVIII era, então, ponto de badalação da elite europeia: sua dona, a princesa Gloria von Thurn und Taxis, patrocinava a moda e a vanguarda das artes — além de altas baladas. Entusiasta da obra de Granato, ela cedeu um ateliê para o artista plástico produzir suas pinturas. O resultado foi um momento de explosão criativa que define de forma lapidar sua trajetória. Figuraça com alma de roqueiro e de agitador cultural, ele se sentia em casa no mundo mágico da princesa. O castelo acabou se provando uma bela fonte de inspiração: ali ele elaborou um vibrante conjunto de telas, algumas das quais podem ser vistas na mostra Seres, em cartaz a partir de sábado 19, na Dan Galeria, em São Paulo.
A exposição numa galeria privada marca a volta triunfal ao mercado de arte, sete anos após sua morte, de um criador que sintetiza as batalhas e inquietações da cultura nacional nas últimas décadas. Nascido em Campos de Goytacazes, interior fluminense, Granato desde jovem se destacou pela atuação ruidosa no eixo Rio-São Paulo. Foi um dos tradutores da arte pop dos anos 1960 para a realidade brasileira. Na década seguinte, esteve na ponta de lança das pirações da contracultura e do tropicalismo — notadamente, ao promover e estrelar eventos da arte performática, como a notória Mitos Vadios (1978), um protesto contra os ditames de uma bienal latino-americana. Diante de um arco de interesses tão amplo, que ia da atuação à escrita e à dança, a nova mostra funciona como um lembrete do essencial: Granato foi, antes de tudo, um pintor vigoroso e inovador.

Embora a pintura o tenha acompanhado desde sempre, foi a partir dos anos 1980 que Granato consolidou suas marcas inconfundíveis: uma profusão de cenas pinceladas com celeridade, em que o uso incendiário das cores se funde às formas de personagens sem rosto — mas plenos de expressividade. “São figuras que incorporam trejeitos comuns, também presentes na personalidade expansiva do artista, possíveis autorretratos multifacetados”, explica no catálogo o curador Daniel Rangel. Num momento em que a arte figurativa está em alta (inclusive comercialmente), impulsionada pelas bandeiras identitárias, é fabuloso notar como Granato já fazia isso com maestria e incrível modernidade décadas atrás.
Arte contemporânea brasileira (1970–1999)
No castelo da princesa alemã ou em seu movimentado ateliê no bairro de Pinheiros, em São Paulo, Granato valeu-se de uma ferramenta fundamental para atingir a maturidade como pintor: a pesquisa inabalável com as tonalidades dos pigmentos. Ao ver suas imagens de figuras antropomórficas ou humanas em atitudes diversas (até mesmo fazendo amor), o espectador é impactado por uma energia intuitiva e primal. Desavisados podem achar seus traços, por vezes, pueris — mas, como o próprio gostava de apontar, lidar com cores não é para principiantes. Ser simples, na pintura, é ciência complexa.

Granato não só dominava essa arte, como a exercia em notável velocidade. O esforço dos herdeiros para conservar e manter viva a obra desse artista prolífico e de tantas facetas exemplifica os desafios para eternizar, na era dos cliques descerebrados nas redes sociais, o legado dos grandes nomes da produção contemporânea nacional. Em paralelo à mostra, foi concluída recentemente em São Paulo a criação de uma reserva técnica, espaço onde cerca de 10 000 itens, dos quais 3 000 são pinturas, têm armazenamento adequado e passam por mapeamento histórico e catalogação digital. Um trabalho importante para que museus, acadêmicos e colecionadores tenham referências confiáveis sobre o artista. “Esses registros não são só do meu pai, mas de toda a geração dele”, diz sua filha, a jornalista Alice Granato. Um legado colorido não se apaga.
Publicado em VEJA de 18 de agosto de 2023, edição nº 2855
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