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“Legado da Semana de 22 precisa de constante renovação”, diz brasilianista

Para Kenneth David Jackson, da Universidade de Yale, a cultura brasileira perde espaços e inserção internacional por falta de um projeto cultural de Estado

Por Diego Braga Norte
Atualizado em 11 fev 2022, 10h22 - Publicado em 11 fev 2022, 10h19
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  • O americano Kenneth David Jackson estava no Brasil em 1972, durante o cinquentenário da Semana de Arte Moderna de 1922. Na época, ele era um jovem estudante na Universidade de São Paulo, onde pesquisava literatura brasileira sob orientação do professor Antonio Candido. Cinquenta anos e mais de uma dezena de livros depois — incluindo obras sobre Machado de Assis e Oswald de Andrade — ele hoje é o atual diretor de estudos em língua portuguesa da Universidade de Yale – e um dos mais respeitados brasilianistas na academia americana.

    Falando de seu escritório em New Haven, no estado de Connecticut, Jackson sente não poder estar em São Paulo para acompanhar os eventos em comemoração ao centenário da Semana – que é comemorado a partir desta sexta-feira, 11. Embora entusiasta do modernismo brasileiro, ele mantém uma postura crítica em relação aos desdobramentos do movimento, apontando que as aspirações internacionais dos modernistas se esvaíram no tempo por falta de uma política cultural séria e contínua. Jackson afirma que “obras fundamentais da literatura brasileira carecem de traduções decentes”. E arremata: “Governos sérios, através de suas embaixadas, patrocinam boas traduções de grandes obras nacionais.” Leia a seguir trechos da conversa do brasilianista com VEJA:

     

    Tempos atrás, o senhor proferiu uma frase muito interessante para definir o modernismo brasileiro: “um nada que é tudo”. Poderia explicar melhor essa ideia? É uma frase de Fernando Pessoa a respeito de Ulisses, que tem a ver com o processo pelo qual os mitos entram na realidade. No caso da Semana de Arte Moderna, hoje ela entrou na nossa realidade como mito, sendo agora uma entidade talvez muito diferente dos programas originais de 1922. Naquela época foi importante, mas hoje é um mito.

     

    Falando da mitificação e até da mistificação da Semana, quase toda produção cultural brasileira é medida a partir do modernismo, até muita coisa que veio antes acaba sendo enquadrada no chamado (e muito criticado) pré-modernismo. Nesse sentido, o senhor acredita que a cultura e as artes brasileiras estão “presas” ao modernismo? Para mim trata-se de uma fase, um período nas artes, não de um “ismo.” O maneirismo está “preso” ao barroco, ou o rococó ao classicismo? Também não há limites, portas ou muros para separar um “pré” ou “pós-modernismo”. Prefiro ver na modernidade brasileira, em todos os seus talentos e toda a sua variedade, um florescimento de expressão nas artes e na sociedade que continua até hoje.

     

    O senhor disse que o “Abaporu é o quadro mais importante da América Latina”. Qual a importância simbólica da obra?  O Abaporu está ligado à Antropofagia, hoje conceito internacionalmente debatido, e é uma obra-chave da modernidade primitivista. Estourou em exposições internacionais desde a década de 1990 e sobretudo depois das exposições do Chicago Art Institute e do MoMA, em 2018 e 2019.

     

    Os modernistas da Semana eram muito ligados à produção vanguardista europeia, tinham conexões internacionais, viajavam com frequência. Como o senhor vê esse internacionalismo dos modernistas? Os modernistas da Semana importaram as vanguardas europeias para tentar construir e exportar uma imagem diferente do Brasil. Houve uma presença importante de diplomatas na articulação do movimento. Já nasceu com olhos no exterior, como fruto de intercâmbios e promovendo encontros. Pena que não houve e não há continuidade nesse projeto, que era algo realmente moderno, internacionalista, globalizado. Graça Aranha havia pouco tempo se aposentara como diplomata quando discursou na abertura da Semana. Ronald de Carvalho [outro participante] tinha sido diplomata em Paris em 1913, e em Portugal, em 1914. O diplomata Souza Dantas era anfitrião dos artistas brasileiros e organizava jantares com grandes personalidades das artes em Paris, em 1923, patrocinando o discurso de Oswald de Andrade na Sorbonne.

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    E quais os motivos que levaram à interrupção desse processo de internacionalização das artes e da cultura brasileira? Há um conjunto de fatores, mas o principal é a ausência de um projeto cultural de Estado para valorizar e exportar cultura, arte e brasilidade. Portugal tem o Instituto Camões, a Espanha, o Cervantes; a França, a Aliança Francesa; o Reino Unido, o British Council; a Alemanha, o Göethe; os Estados Unidos têm Hollywood. O Brasil nunca teve e não tem ainda representação e promoção cultural em países-chave. Essa carência afeta a visibilidade da produção cultural brasileira e a consciência da própria língua e cultura. Por exemplo, nos Estados Unidos, o Brasil é incorporado no conjunto “América Latina” e perde sua especificidade. Onde está o Brasil no mundo?

     

    A falta de um projeto cultural afeta a projeção internacional do Brasil? Sim, afeta muito. Obras fundamentais da literatura brasileira carecem de traduções decentes. Macunaíma foi destruído, a tradução é muito ruim. Grande Sertão: Veredas foi mutilado a ponto de ser vendido como um spaguetti western, toda a inovação linguística do Guimarães Rosa foi ignorada na tradução. Machado de Assis só ganhou um ótima tradução do Memórias póstumas de Brás Cubas agora, em 2020. Governos sérios, através de suas embaixadas, patrocinam boas traduções de grandes obras nacionais.

     

    O modernismo (e os modernistas) de 1922 acreditava que tudo que fosse novo seria automaticamente melhor do que algo anterior, velho, passadista. Poderia explicar essa característica? Era uma visão muito influenciada pelo positivismo; não só o progresso, mas a progressão é um ideal modernista. Há traços do nacionalismo positivista muito fortes na cultura e história recentes brasileira. Até a bandeira nacional tem um lema positivista. Os fundamentos dessa visão estavam presentes no modernismo e continuam ainda válidos em diferentes elementos da cultura e da sociedade brasileira.

     

    Stefan Zweig escreveu que “o Brasil é o país do futuro” e essa frase virou um epíteto nacional. O Brasil estaria condenado a ser uma utopia e não uma realidade? A frase de Stefan Zweig precisa ser entendida no contexto de uma Europa devastada por guerras e o Holocausto. Mesmo antes, em Spengler [o historiador alemão Oswald Splenger, 1880-1936] há a ideia do “declínio do Ocidente” e o ideal do homem das Américas. O Brasil recebeu um número imenso de imigrantes e refugiados. Como no romance de Milton Hatoum [Órfãos do Eldorado], os Eldorados não são sustentáveis, porém os mitos são necessários.

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    Recentemente, sobretudo pelas obras do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, a antropofagia voltou com força em trabalhos e pesquisas acadêmicas. Como o senhor vê hoje a antropofagia oswaldiana? Os ensaios mais interessantes têm a ver com relações internacionais e teorias de encontros de povos e culturas. E há grande número de obras de arte e arquitetura que tratam do tema. É uma ideia que não envelheceu, mas rejuvenesceu. A antropofagia está mais atual hoje.

     

    O senhor esteve no Brasil durante as festividades do cinquentenário da Semana, em 1972. Quais as semelhanças e diferenças entre o cinquentenário e o atual centenário? Há uma internacionalização muito maior da cultura e das artes hoje, uma divulgação pela cultura jovem, música, cinema, universidades, uma publicação muito mais intensa e especializada das obras e, enfim, acesso às partituras do Villa-Lobos (mas ainda não de outros compositores importantes, como Camargo Guarnieri). Estão saindo grandes coleções de obras de Oswald de Andrade, da Pagu e de outros modernistas. Há agora no centenário uma presença e consciência muito maior do legado da Semana.

     

    Cem anos depois da Semana, nós temos o que comemorar? Quais os legados mais importantes da Semana e do modernismo? Como queriam os organizadores da Semana, o Brasil é representado internacionalmente por artistas com altíssimo grau de profissionalização, bem acolhidos nos museus e salas de concerto mundiais, com obras expressivas de uma realidade brasileira. Como queria Mário de Andrade, a inteligência artística do país tem sido atualizada, em grande parte apoiada pelo significado da Semana. É um legado que precisa de constante atenção e renovação.

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