Até o ano passado, Montero Lamar Hill era apenas um jovem negro em busca de algo para fazer da vida no subúrbio de Atlanta, sul dos Estados Unidos. Depois de abandonar a faculdade de computação, o estudante desiludido compôs uma canção despojada que tinha um pé no country e o outro no rap. A letra satirizava o estilo de vida de um, digamos, caipira ostentação americano: “Minha vida é um filme / Com rodeios e seios / Chapéu de caubói da Gucci / E jeans Wrangler”. Assim que Old Town Road ganhou o mundo, o rapaz converteu-se em um novo fenômeno da música: Lil Nas X.
O jovem de 20 anos empreendeu várias façanhas cavalgando uma mesma canção. Lil Nas X e sua Old Town Road ficaram dezenove semanas no topo da parada americana, conquistando o título de música que ocupou por mais tempo na história o número 1 do ranking da Billboard. Por duas décadas, o recorde pertenceu a One Sweet Day, parceria da cantora Mariah Carey com o Boyz II Men, que ficou por dezesseis semanas no topo — marca igualada em 2017 por Despacito, reggaetón de Luis Fonsi e Daddy Yankee. Lil Nas X não só botou os antigos recordistas no bolso. Sucesso embalado nas redes, à margem da indústria musical, Old Town Road consagrou o modus operandi da era do entretenimento digital. E mais: negro e assumidamente gay, o artista invadiu um terreno originalmente branco e conservador, a música country.
Sim, o country sempre foi um gênero tradicionalista em matéria de temática e comportamento (como, de resto, também ocorre no rap, um meio notoriamente sexista e homofóbico). Mas, musicalmente, o country tem sido capaz de dialogar com outras vertentes e, assim, garantir sua perpetuação (veja o quadro). Hank Williams (1923-1953), o primeiro pop star de bota e chapelão, influenciou Elvis Presley e os Rolling Stones. Nas décadas seguintes, o sotaque caipira se fundiu com as guitarras e o pop.
O flerte com o rap, a rigor, já vinha se anunciando desde o fim dos anos 80, com resultados ora bizarros, ora convincentes perpetrados por figuras como o rapper branco Kid Rock. Lil Nas X é fruto de um período em que a fluidez entre estilos musicais é muito maior. A geração dele também se beneficia da tecnologia: comprou na internet, por 30 dólares, a levada de teclado que viria a se tornar Old Town Road. Temperou-a com toques do trap — versão mais eletrônica do hip-hop — e divulgou sua criação nas redes sociais. Numa delas, a TikTok, jovens faziam vídeos dublando Old Town Road vestidos de cowboy. Hoje a música tem 1 bilhão de streamings só no Spotify. No YouTube, pululam vídeos em que é entoada por atletas, torcidas e estudantes ginasiais.
Curiosamente, o country rap gay de Lil Nas X fundiu a cabeça até dos analistas da Billboard. Eles tiraram Old Town Road da categoria country, porque a canção em tese não teria elementos suficientes para ser caracterizada como caipira. Mas, depois de emplacar no ranking devotado ao pop da revista, a música fez valer seu lugar no mundo country. O socorro a Lil Nas X partiu dos próprios artistas do gênero. Billy Ray Cyrus (pai da Miley) canta em um clipe ao lado do rapper. Keith Urban, outro astro country, postou no YouTube uma versão da música tocada no banjo para mostrar a sintonia entre os estilos. De alma lavada com tantos apoios, Lil Nas X não perdeu a chance de tripudiar sobre os críticos: “Você pode botar elementos de rap em uma canção country, mas desde que seja um artista estabelecido no ramo. Quando um cara negro faz o mesmo, e ainda por cima alcança o topo das paradas, vem o questionamento: ‘Quem é esse filho da mãe?’ ”.
O “abraço” das estrelas não é só altruísmo: elas não querem perder a conexão com uma tendência forte. O country rap está dando lucro a gravadoras como a Average Joe’s Entertainment. Para Shannon Houchins, dono do selo, a alma do country persiste apesar dos cruzamentos. “É uma questão de estilo de vida. Falar sobre cidades pequenas, estradas, as coisas do interior”, diz. A Average Joe’s aposta em artistas como Sarah Ross, ex-participante do American Idol que cresceu numa fazenda e é um dos raros nomes femininos no country rap.
Ao sair do armário, Lil Nas X temia uma debandada dos fãs. Houve, de fato, reações homofóbicas — mas o sucesso só cresceu. Em junho, foi contratado pela gravadora Sony. Em breve, iniciará turnê. Muitas outras coisas, aliás, mudaram. Na época de crise na faculdade, ele brigou com os pais e foi viver com uma irmã. “Eu dormia no chão da casa dela e não tinha dinheiro. Hoje, tudo mudou, e sou gay assumido”, declarou. Há duas semanas, foi indicado ao Country Music Awards, a maior premiação do gênero. Se for de chapelão Gucci à festa, em novembro, será um glamour só.
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Publicado em VEJA de 11 de setembro de 2019, edição nº 2651