Com quase 2 metros de altura e 3 de largura, o imponente quadro Pátria, do artista brasileiro Pedro Bruno (1888-1949), prende a atenção de quem o vê no Museu da República, no Rio de Janeiro. A obra de 1919 faz uma alegoria sobre o nascimento da recém-fundada República brasileira, instaurada à base de baionetas em 1889. Na imagem, mulheres se dividem entre a costura da bandeira verde e amarela e o cuidado com as crianças. Ao fundo, do lado esquerdo, uma idosa recolhe o estandarte da monarquia, representando o que ficou ultrapassado — também símbolo da decadência do velho regime é o homem idoso e acabrunhado do lado direito. Assim nascia o Brasil — ao menos para a elite da época: no conforto de um lar cuidado por mulheres, na esperança de uma geração abraçada à bandeira — e nas mãos de pessoas brancas.
Imagens da branquitude: A presença da ausência – Lilia Schwarcz
Pátria é um entre vários exemplos selecionados pela historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz para seu novo livro, Imagens da Branquitude: a Presença da Ausência. Na pesquisa, a paulistana de 66 anos, membro da Academia Brasileira de Letras, propõe reflexões sobre como brancos e negros são representados (ou ocultados) em quadros, fotografias, monumentos, propagandas de ontem e hoje — e como as distinções dão alicerce à intolerância que nutre o racismo estrutural. “Imagens não são só o reflexo de uma época, elas possuem carga política e social”, disse a autora a VEJA (leia entrevista aqui).
Pequeno manual antirracista – Djamila Ribeiro
O exercício é parte do cotidiano da autora. Na Universidade de São Paulo (USP), ela ministra dois cursos que perpassam a prática: um se chama Lendo Imagens e o outro, A História do Pensamento Brasileiro: 1870 a 1930. No Instagram, amplia a análise com imagens dos dias de hoje. A conexão entre passado e presente se revela assustadora. O imaginário proposto pelo quadro Pátria se reproduz, um século depois, numa propaganda lançada pelo governo de Jair Bolsonaro em 2020, em que cinco crianças brancas e felizes representam o futuro e a prosperidade do país.
Responsáveis pelas narrativas que deram o tom da identidade nacional, pessoas brancas se estabeleceram como a norma e o símbolo da civilização, aponta Lilia. Por isso, imagens como as duas já citadas podem não causar estranhamento a muitos olhos treinados a ver a pele clara estampada em anúncios, novelas, livros e obras de arte. Lilia destrincha essa norma com lupa e dados históricos — e sob a “ótica da branquitude”, lugar de fala autocrítico onde a historiadora, que é branca, considera estar. Dessa posição sai a análise de um quadro mais explícito em sua intenção. Do espanhol radicado no Brasil Modesto Brocos (1852-1936), a obra A Redenção de Cam (1895) exalta teorias eugenistas do século XIX que viam na miscigenação uma forma de “salvar” o mundo da raça negra, tida como inferior. No quadro, uma avó celebra o nascimento do neto branco. A idosa negra está descalça sobre um chão de terra, um sinal de sua selvageria, em oposição ao genro, o pai da criança, um homem branco, bem-vestido e calçado, em um terreno pavimentado, como ditam as regras da civilização.
O espetáculo das raças – Lilia Schwarcz
Ao longo do livro, a autora faz uma contraposição essencial: fora do lugar de submissão, pensadores e artistas negros se impõem como agentes da própria história. Exemplo disso é a impactante escultura Amnésia (2015), do paulistano Flávio Cerqueira: a cena sarcástica mostra um garoto negro que se banha com tinta branca. A manipulação da memória nacional afeta a todos — e cabe a cada um o exercício de observá-la com olhos mais atentos.
Publicado em VEJA de 16 de agosto de 2024, edição nº 2906