Nada melhor para esquecer um pouco a pandemia do que ler sobre uma crise passada. Transcorreram pouco mais de dez anos desde a Grande Recessão — a crise financeira global de 2008-2009. Mas parece que ela se deu em outro mundo — e, de certa forma, é outro mundo mesmo. A história da crise e de como ela foi combatida é contada em Apagando o Incêndio por três de seus protagonistas: Ben Bernanke, presidente do FED (o banco central americano) de 2006 a 2014; Henry Paulson, secretário do Tesouro dos Estados Unidos de 2006 até o início de 2009; e Timothy Geithner, presidente do FED de Nova York até 2009 e sucessor de Paulson como secretário do Tesouro a partir da posse de Barack Obama. Além de dominar o noticiário nos anos da crise, a atuação decisiva do trio foi bem retratada em 2011 no filme Too Big to Fail (Grande Demais para Quebrar, em uma tradução livre), da HBO — em que Paul Giamatti fazia Bernanke, William Hurt era Paulson e Billy Crudup vivia Geithner.
A crise de 2008 começou com uma bolha imobiliária. No período de excitação, hipotecas absolutamente temerárias eram concedidas. Pela alquimia dos derivativos, o risco desses títulos era diluído por todo o sistema financeiro. Houve quem dissesse que o uso de derivativos impediria que uma nova crise financeira ocorresse. Na realidade, eles a impulsionaram. As condições do mercado tornavam provável uma crise sistêmica: legislação fraca; agências reguladoras fragmentadas, com jurisdições pouco claras e muita redundância; garantias que valiam apenas para bancos tradicionais e não para outros tipos de instituições financeiras não bancárias; alta alavancagem. Em 2007, a bolha estourou. E o que poderia ser apenas uma crise setorial contaminou todo o mercado com um pânico que só tem paralelo na crise de 1929.
Foi nesse momento que os autores tiveram de agir rapidamente. A saúde do mercado financeiro depende, mais que em outros mercados, de confiança. Os bancos não têm como honrar todos os seus compromissos ao mesmo tempo. Se todos resolverem se desfazer de seus ativos de uma vez, o sistema colapsa. Num momento de pânico como ocorreu na crise de 2008, o único jeito de impedir o pior é dando a todos os participantes a segurança de que as instituições sistêmicas não quebrarão. Para isso, é preciso que se garantam recursos a essas instituições. Mas os poderes à disposição das autoridades eram poucos. Em momentos cruciais, esses especialistas — que trabalhavam sob enorme pressão — dependeram de decisões políticas longamente negociadas no Congresso americano. Os autores estão cientes de como suas ações entraram para a percepção popular: o contribuinte teria pago a conta e os responsáveis, as instituições financeiras que geraram a crise, foram preservados. Direita e esquerda se uniram para condenar o “resgate” a Wall Street.
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Há sempre um conflito de escolha em jogo. Banco Central e Tesouro muito generosos podem elevar o risco moral das instituições financeiras: ao saberem que sua irresponsabilidade será paga com dinheiro do governo, tornam-se mais irresponsáveis. Ao mesmo tempo, se forem muito duros, o pânico se espalha por todo o sistema e todos perdem, até os responsáveis. Sendo assim, diante de uma crise que ameaçava jogar os Estados Unidos novamente numa Grande Depressão como a dos anos 30, os autores não tiveram dúvida: melhor exagerar na ajuda e trazer confiança ao mercado.
A estratégia às vezes pecou pelo timing, em outros momentos foi insuficiente (foram incapazes, por exemplo, de salvar o banco Lehman Brothers). Mas, no saldo geral, funcionou: eles conseguiram impedir a quebradeira geral e a depressão, e a economia americana se recuperou melhor que a de outros países. No final das contas, o governo dos Estados Unidos recebeu de volta o que emprestou, lucrando no processo. Mais que apenas recontar o desenrolar da crise e as muitas medidas empreendidas para contê-la, o livro é uma lição de liderança: da necessidade de ações postas em prática sob grande incerteza e da capacidade de tomar decisões impopulares em prol do bem comum.
A insistência dos autores em defender suas escolhas não é apenas um desejo de limpar seus nomes. Na parte final do livro, um diagnóstico preocupante: ainda que as regulamentações do setor financeiro estejam mais rigorosas, reduzindo a probabilidade de uma nova crise financeira naqueles moldes, as ferramentas para combatê-la estão mais escassas e são menos potentes. Embora a economia estivesse crescendo em 2019, quando o livro foi escrito, a nota final era de preocupação com o despreparo americano para enfrentar uma nova crise.
E a nova crise chegou. Suas feições são completamente diferentes. O coronavírus impacta antes de tudo a economia real — a paralisação de grande parte do consumo e da produção —, com profundas consequências para o mercado financeiro. Hoje, como lá atrás, necessita-se de ações decisivas, mesmo que impopulares, sem descuidar da confiança de que dias melhores virão — e que, portanto, vale a pena investir. O que mudou, para muito pior, são as condições políticas: a polarização extrema inibe a cooperação necessária, e o populismo vitorioso nas últimas eleições é incapaz de se pautar por qualquer valor que não a popularidade imediata. A era de George W. Bush e Obama ainda podia contar com a confiança no processo político. Donald Trump é sintoma de sua erosão.
Após a lambança na saúde pública, restará a economia devastada. Trump já vinha promovendo a irresponsabilidade fiscal desde o início do mandato, e tem pouco espaço para novos gastos (um dos motivos da vulnerabilidade americana citados pelos autores). No Brasil, o governo Bolsonaro promete responsabilidade, mas não exibia as contas equilibradas quando a pandemia explodiu — e adotou medidas erráticas para minimizar seus efeitos na economia. Em vez de apagarem o incêndio, os líderes atuais parecem determinados a assoprar as chamas.
Publicado em VEJA de 22 de julho de 2020, edição nº 2696
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