Na cena sete do ato quatro de Hamlet, a rainha Gertrude anuncia que Ofélia, par romântico do príncipe que dá nome à obra, se afogou em um riacho ao cair dos galhos de um salgueiro. A cena inspirou o britânico John Everett Millais (1829-1896) a pintar um de seus quadros mais famosos, que retrata Ofélia sem vida sob o leito de um rio, como quem descansa de um sofrimento profundo. Os traços desenhados são do rosto de Elizabeth Siddal (1829-1862). Por meses a fio, a modelo se deitou em uma banheira aquecida por lampiões. Quando a engenhoca falhou, não se queixou da água gelada, e pegou uma pneumonia que quase a matou. A história fez dela um símbolo do descaso e sofrimento das mulheres vertidas em musas por grandes artistas.
Muse: Uncovering the hidden figures behind art history’s masterpieces
Mas nem só de submissão e perrengues viviam essas beldades, atesta o livro recém-lançado nos Estados Unidos, e ainda sem tradução no Brasil, Muse: Uncovering the Hidden Figures Behind Art History’s Masterpieces (Musas: Descobrindo as Figuras Ocultas por Trás de Obras de Arte Históricas, em português). Escrito pela inglesa Ruth Millington, especialista em história da arte, apresenta facetas pouco conhecidas de mulheres (e de alguns homens) que emprestaram corpo e rosto a quadros célebres. “A maioria dos pintores não dava crédito às suas musas. Elas foram mantidas anônimas para que o foco fosse voltado só para eles”, contou a autora a VEJA.
Finding Dora Maar: An Artist, an Address Book, a Life
A modelo de Ofélia, aliás, era uma mulher arrojada para sua época e a submissão em nome da arte de Millais parece um ponto fora da curva em sua trajetória. Desenhista e poeta, Siddal era uma aspirante a artista quando posou para um quadro pela primeira vez e fez do ofício uma carreira. No universo dominado por homens da era vitoriana, ela, que tinha acesso limitado à educação formal, se infiltrou na efervescência cultural inglesa como modelo e virou inspiração de pintores, incluindo Dante Gabriel Rossetti (1828-1882), com quem se casou. Não se contentou, porém, com a passividade de sua função. “Ela foi parte do movimento. Aprendeu a pintar, conseguiu patrocinadores e exibiu trabalhos com a nata masculina”, conta Ruth.
Artemisia Gentileschi: The Language of Painting
Caminho semelhante seguiu Dora Maar (1907-1997). Nascida em Paris, ela é a inspiração por trás de uma série de obras de Pablo Picasso (1881-1973), com quem foi casada, incluindo a célebre A Mulher que Chora (1937). Fotógrafa e militante antifascista, foi uma das responsáveis por abrir os olhos de Picasso para o sofrimento humano, tema que marcaria a carreira do cubista. Foi ela quem conseguiu um estúdio grande o suficiente para que ele pintasse a Guernica (1937). Dora também fez de Picasso seu muso ao fotografá-lo enquanto ele pintava. O artista, por sua vez, nunca deu créditos a Dora. Era abusivo e infiel. Tamanha turbulência transpareceu nas lágrimas que descem pelo rosto da mulher na obra assinada por ele — num exemplo gritante da mistura de fascínio e objetificação.
Antes um elogio, hoje um sinônimo de submissão, o termo “musa” surgiu na Grécia antiga e era atrelado a nove divindades, filhas de Zeus, que detinham o poder de inspirar os homens. Poderosas, eram adoradas e respeitadas. A virada se deu no Renascimento, quando mulheres reais passaram a ser pintadas e idealizadas como símbolo de sexualidade. Não demorou para que o estigma de ser uma musa tornasse modelos e amantes objetos de pouco valor para os pintores. “Havia um desequilíbrio de poder até o século XX. Era um mundo masculino, e essas relações refletiam na arte”, explica Ruth. A italiana Artemisia Gentileschi (1593-1653) desafiou padrões e foi uma das primeiras a fazer de si mesma uma musa. Estuprada por um professor, usou autorretratos para expor o próprio sofrimento — e chegou a decapitar homens em seus quadros.
Exceção à regra, Gala Dalí (1894-1982) foi uma das poucas a ser reconhecidas. Esposa de Salvador Dalí (1904-1989), inspirou não apenas o artista, mas também vários nomes do movimento surrealista com quem, não raro, manteve casos amorosos. Foi também agente do marido. “Ao assinar minhas pinturas como ‘Gala-Dalí’, dei nome a uma verdade existencial, pois sem Gala eu não existiria”, declarou o pintor. Ao romper com os padrões, ela foi chamada até de “dominatrix demoníaca”. Na arte contemporânea, a definição de musa foi ampliada, assim como os padrões de beleza. Caso do retrato da modelo obesa Sue Tilley feito pelo alemão Lucian Freud (1922-2011). Tilley posou para a tela das 7 horas da noite até a 1 da manhã durante nove meses. É a prova de que cores vivas de sacrifício em nome da arte nunca deixaram de fazer parte do script das musas, independentemente das mudanças de percepção da sociedade sobre o papel dessas beldades através dos tempos.
Publicado em VEJA de 15 de junho de 2022, edição nº 2793
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