Em calculada demonstração de insegurança, o escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881) quis saber a opinião da estenógrafa Anna Snítkina (1846-1918) sobre certa ideia para um próximo livro. “Ainda não sei o final, quero sua ajuda”, disse ele à profissional que o auxiliara a colocar no papel sua novela O Jogador (1866). O novo livro narraria a história de um artista de infância dura, órfão de pai, que padecia de epilepsia. Logo Anna entendera que não se tratava de ficção: era a biografia do próprio autor. Dostoiévski continuou. Enquanto a esposa desse tal artista estava à beira da morte, ele a traiu com outra e se culpava por isso. Afundado em tristeza e solidão, recuperou o ânimo ao conhecer uma jovem gentil e inteligente. Mas ele tem medo de ser rejeitado. O escritor então chega à questão final: “Se coloque no lugar dessa jovem. Imagine que o artista sou eu, que confessei meu amor por você e lhe pedi para ser minha mulher. O que você diria?”. Anna respondeu sem meias palavras ao pedido de casamento indireto: “Eu diria que te amo e te amarei a vida toda”. A jovem de 20 anos (ele tinha 44), que passou a atender por Anna Dostoyevskaia, mal sabia quanto a jura de amor eterno seria testada ao longo de um casamento que faz valer a expressão “na alegria e na tristeza”.
Especialista em literatura russa, o americano Andrew D. Kaufman narra em detalhes os catorze anos dessa união no livro The Gambler Wife: A True Story of Love, Risk, and the Woman Who Saved Dostoyevsky (A Esposa do Jogador: uma História de Amor, Risco e a Mulher que Salvou Dostoiévski, sem tradução no Brasil). “Se não fosse por Anna, dificilmente teríamos obras magníficas como Os Irmãos Karamázov e O Idiota”, disse Kaufman a VEJA. Segunda e última esposa do mestre da literatura russa, Anna foi uma notável editora e empreendedora. Ela não só ajudou Dostoiévski a se reerguer de uma terrível fase pessoal e financeira, causada pelo vício em jogos, como estabeleceu um padrão de publicação e distribuição de livros que mexeu com o mercado editorial e fez dela a primeira mulher russa a ter uma editora própria. Apesar de sua bem-sucedida carreira ao lado do marido famoso, Anna acabou relegada pela história. Autodeclarada “mulher emancipada”, termo corrente na Rússia de 1860 que equivaleria a “feminista” anos mais tarde, ela agora é resgatada das sombras pelo movimento do qual foi precursora.
Eis que o revisionismo histórico contemporâneo se volta para uma nova e fascinante tarefa: fazer com que aquelas mulheres “por trás de grandes homens”, como diz o chavão, deem um passinho à frente para enfim receber a luz dos holofotes que merecem. Assim, além de Anna, a historiografia busca dar o devido valor a figuras como a escultora francesa Camille Claudel (1864-1943), amante de Auguste Rodin (1840-1917), que foi internada de forma compulsória em um hospital psiquiátrico pelo irmão ciumento, o escritor Paul Claudel (1868-1955) — e lá morreu esquecida. A obra de Camille ganhou um museu só dela na França, em 2017. E hoje especialistas apontam que várias esculturas da melhor fase de Rodin seriam uma colaboração com a amante — que acabou sem créditos, nem pagamento.
O mesmo tipo de revisão iluminou Jo van Gogh-Bonger (1862-1925), esposa de Theo van Gogh (1857-1891), irmão do pintor holandês Vincent van Gogh (1853-1890). Biografada em Alles voor Vincent (Tudo por Vincent, sem edição no Brasil), de Hans Luijten, Jo é a resposta para a pergunta: como Van Gogh, que vendeu pouquíssimos quadros em vida, se tornou um fenômeno póstumo? Viúva, ela se viu sozinha com um bebê, 400 pinturas encalhadas do cunhado e cartas trocadas entre os irmãos. A correspondência lhe deu o estalo de marketing: a obra de Van Gogh não se resumia a telas — era a vigorosa expressão de uma alma em agonia. Numa época de crescente interesse pela psicologia, trabalhou duro para que o mercado de arte olhasse para Van Gogh por esse prisma. Resultado: hoje a obra do pós-impressionista é compreendida à luz de seus terríveis transtornos mentais.
Anna também foi marqueteira talentosa. Recém-casada, percebeu que Dostoiévski estava no fundo do poço — e botou ordem na casa. Estipulou horários para a produção do marido, estudou o esquema das livrarias, reuniu os textos publicados de forma seriada em obras únicas e devolveu ao autor a estabilidade financeira que lhe garantiria tempo para tecer trabalhos como Os Irmãos Karamázov. Ao ficar viúva, recusou ofertas polpudas pelos direitos das obras e investiu em boxes de coletâneas — ação inédita que lhe renderia 5 milhões de dólares em valores atuais. Ela era uma mulher invisível, mas não brincava em serviço.
Publicado em VEJA de 22 de setembro de 2021, edição nº 2756
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