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Louvre entra na polêmica da repatriação de obras saqueadas por nazistas

Vendidas em leilão de 1942, peças sob do tutela do museu protagonizam um embate entre os herdeiros de família judia e o governo francês

Por Tamara Nassif 19 jul 2021, 18h39

Em março deste ano, o Museu do Louvre disponibilizou virtualmente todo seu catálogo de obras de arte – um assombroso montante de quase meio milhão de peças. Entre estátuas da Antiguidade e pinturas célebres como Mona Lisa e A Liberdade Guiando o Povo, há uma “mini” coleção de mais de 1 700 itens saqueados pelos nazistas durante a II Guerra Mundial, e devolvidos à França ao fim do conflito. Por não terem sido reivindicados por herdeiros dos proprietários legítimos, continuam sob tutela do maior museu do mundo (a eles se somam centenas de trabalhos espalhados por outras instituições de arte do país). Mas a retenção dessas obras tem gerado mal-estar à França, tanto que o Louvre tem procurado pelos descendentes dos verdadeiros donos das preciosidades. Em breve, isso pode ganhar um novo desfecho: trabalhando para o museu, a historiadora de arte Emmanuelle Pollack, de 56 anos, tem puxado a fila para o processo de devolução de artigos ilegalmente transferidos para instituições francesas em meio à ocupação nazista.

Depois de trabalhar em uma força-tarefa alemã que repatriou 1 500 peças, Pollack agora rastreia a origem de outras 30 expostas pelo Louvre em 2017, como parte de uma mostra que almejava encontrar os herdeiros das pinturas “órfãs”. Seguindo um método na caçada de criminosos, ela “seguiu o dinheiro” para investigar a proveniência de peças que mudaram de mãos de forma suspeita durante a II Guerra. É um trabalho detetivesco: ela vasculha arquivos volumosos do Louvre, antigos catálogos de leilões e raisonnés, galerias de arte, recibos de emolduradores e correspondências para rastrear o caminho das obras de arte ao longo dos anos. Emmanuelle é a “Indiana Jones das Pinturas Saqueadas”, já descreveu uma revista francesa.

Foi na força-tarefa alemã que ela descobriu uma etiqueta amarelada nas costas de um retrato do impressionista Jean-Louis Forain, peça-chave para a busca do Louvre. “O verso das pinturas pode ser muito falante”, disse em entrevista ao jornal The New York Times. Um número de registro de um catálogo de leilão, que identificava como local de origem o “gabinete de um amante da arte parisiense”, a levou diretamente para a cidade de Nice. Lá, ela descobriu arquivos públicos de um leilão de quatro dias, ocorrido em junho de 1942, e, entre as 445 peças à venda, estavam obras de Degas, Delacroix, Renoir e Rodin – além das expostas pelo Louvre em 2017.

Retrato de Jean-Louis Forain “Jeune femme debout sur un balcon, contemplant des toits parisiens”, peça da coleção de Dorville que integra o acervo do Louvre
Retrato de Jean-Louis Forain “Mulher jovem em uma varanda, contemplando os telhados parisienses”, peça da coleção de Dorville que integra o acervo do Louvre (Museu do Louvre/Reprodução)

Trabalhando com uma consultoria em genealogia, não demorou muito para que desvendasse a identidade real do “amante da arte parisiense”: era Armand Isaac Dorville, um advogado judeu em Paris. Em 1940, os exércitos de Hitler invadiram e ocuparam a cidade, e o governo colaboracionista de Vichy passou a perseguir ativamente famílias de origem judaica. O advogado, impedido de exercer seu trabalho, fugiu para o Sul da França – onde morreu de causas naturais, em 1941. Por causa das leis de “arianização” vigentes, seus bens não ficaram para a família. Foram a leilão um ano depois, e 12 lotes de sua coleção foram comprados com fundos do governo em nome dos museus da França por René Huyghe, curador de pinturas do Louvre. As mesmas leis impediram que a receita do leilão fosse para os verdadeiros donos das obras. Dois anos depois, cinco familiares de Dorville foram deportados e morreram em Auschwitz.

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Com a história passada a limpo, Emmanuelle Pollack pode conhecer os herdeiros do advogado, que, agora, pedem pela repatriação das obras. Segundo os descendentes Dorville, a venda foi forçada pelas leis anti-judaicas dos tempos da guerra, o que a torna um ato ilegal de “espoliação” ou pilhagem. E não só: eles argumentam que, caso a receita do leilão tivesse sido dada à família, talvez os cinco familiares que morreram em Auschwitz pudessem ter encontrado uma maneira de sobreviver. “Isso não é sobre o dinheiro”, disse Francine Kahn, uma bióloga de 73 anos cujo tio-avô era Armand Dorville. “Temos a responsabilidade de honrar a memória dos nossos que foram perseguidos nos campos de concentração.”

Trabalho de Constantin Guys “Présentation de visiteur”, peça da coleção de Dorville que integra o acervo do Louvre
Trabalho de Constantin Guys “Apresentação da visitante”, peça da coleção de Dorville que integra o acervo do Louvre (Museu do Louvre/Reprodução)

Agora, quase oito décadas depois do leilão, as consequências do que aconteceu em Nice voltaram para assombrar a França. Colocado contra os herdeiros de Dorville e amparado nas lacunas sobre como a venda se deu, o governo francês aceitou as conclusões de uma comissão que examinou os pedidos de indenização de vítimas de leis anti-judaicas. Segundo ela, as peças de Dorville foram vendidas “sem coerção ou violência”, o que não classifica a venda como ilegal.

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Porém, por causa do envolvimento do Louvre, o governo decidiu que as 12 obras compradas devem ser devolvidas aos herdeiros – o que coloca o estado francês em uma situação difícil. Por não terem declarado a venda ilegal, outros museus franceses que compraram ou receberam as peças do leilão estão autorizados a mantê-las. Além disso, é uma decisão que contrasta com o que foi arbitrado pelo Ministério de Cultura da Alemanha, que em 2020 declarou que a venda das peças de Dorville foi ilegal e devolveu outros três lotes sob tutela de museus alemães.

A família de Dorville deve contestar a decisão do governo francês em tribunal – e o desfecho desse caso pode repercutir até em museus dos Estados Unidos, do Metropolitan Museum of Art, em Nova York, ao Minneapolis Institute of Art, que abrigam peças do leilão de Nice. Os herdeiros pedem para que essas obras também sejam devolvidas. A beleza da arte não apaga os fatos abomináveis do passado.

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