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Lucrecia Martel: ‘A classe média naturalizou o racismo e a mesquinharia’

Diretora argentina lança seu primeiro filme de época, Zama, em que o recuo histórico é apenas pretexto para falar da condição humana e da América Latina

Por Maria Carolina Maia Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 29 mar 2018, 18h51 - Publicado em 29 mar 2018, 08h23

A argentina Lucrecia Martel é tão tranquila e sorridente que sua fala rápida e afiada pode surpreender um desavisado. Mas a diretora de filmes como O Pântano (2001) e A Menina Santa (2004), verdadeiras bofetadas na classe média e na religião, há muito pensa e problematiza questões que pulsam na Argentina, assim como no vizinho Brasil – sua visão da América Latina é, aliás, a de um continente mais homogêneo que heterogêneo, distinta da forma como os brasileiros costumam olhar para a região, apartando-se dos outros países.

Pensar hoje na América Latina como um território descolonizado é uma fantasia. A colônia se instala quando há uma elite nacional que pensa como gringo. É o suficiente

Em passagem por São Paulo para divulgar Zama, longa de época adaptado do romance publicado em 1956 por Antonio Di Benedetto, sobre um funcionário da Coroa Espanhola que aguarda indefinidamente por uma transferência que o moverá de um verdadeiro fim de mundo para junto da mulher e dos filhos, ela falou a VEJA sobre os temas que pautam a sua obra. Repetiu de forma ainda mais categórica um diagnóstico que já havia dado à imprensa argentina e espanhola, a de que as séries televisivas são super valorizadas — na verdade, diz, um passo atrás na produção audiovisual. E, como boa argentina, falou sobre política, é claro.

 

 

Em que medida um filme de época como Zama serve como metáfora para os dias atuais? O romance me impactou muito justamente pela forte relação que tem com a atualidade. O filme se passa nos tempos coloniais, mas que parecidos que somos. Além de estarmos sempre perseguindo algo que dê sentido à vida, pensar hoje na América Latina como um território descolonizado é uma fantasia. Somos colonizados por todas as forças econômicas que não têm como preocupação melhorar a vida da população. São os Estados Unidos, mas também a burguesia de cada país que fica sempre com a melhor parte de tudo. A colônia não precisa mais de um império externo. A colônia se instala quando há uma elite nacional que pensa como gringo. É o suficiente.

Zama, assim como seus outros longa-metragens, se concentra no cotidiano e no que ele tem de extraordinário. O que faz do dia a dia uma fonte tão rica? O lugar mais permanente é o cotidiano, e também o lugar mais difícil de se pensar. Quando há um atentado contra as torres gêmeas, começa-se a falar em ataque à democracia ocidental, mas ninguém menciona todo o tempo em que uma democracia ocidental esteve assediando o Oriente Médio. O pensamento é difícil no dia a dia. Quando vem uma catástrofe é que ele eclode, geralmente errado. Por isso, o cotidiano me parece o lugar mais importante sobre o qual pensar. É onde estão as relações fundamentais de poder, o racismo naturalizado e o melhor para nós, também.

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A senhora se esforçou para tirar a religião do filme, excluindo personagens, cruzes e outros símbolos. Acha mesmo possível pensar o período colonial sem a Igreja Católica? Isso foi deliberado e contrário ao que dizem todos os documentos da Colônia. Me parece aceitável que os filmes históricos sejam hipotéticos, uma ficção científica. Zama é ficção científica, na minha opinião, porque tomei liberdades como essa de apagar a Igreja. O cinema tem que servir para que pensemos o passado, presente e futuro. Já temos muito preconceito a respeito de como a Igreja agiu no passado e como age hoje. Me pareceu melhor que ela aparecesse pouco, na cena em que surge um personagem morto, para que pudéssemos destacar, no passado, a vida civil, a responsabilidade que o indivíduo teve e tem na história. Foi arbitrário. Mas, para mim, o pensamento precisa ser arbitrário. Se só pensarmos em bases históricas, vamos cometer muitos horrores, vamos repetir uma história que não é muito verdadeira.

O crime contra a Marielle Franco é muito mais relevante que a queda das torres gêmeas em Nova York

Diego de Zama, o protagonista, não é pobre, mas não detém poder de fato no vilarejo onde vive. Por que seu interesse por essa classe média apartada do poder? O poder se revela por inteiro nas zonas da sociedade em que não há poder. É fácil entender o poder quando se pensa em uma pessoa que voa de helicóptero em São Paulo. O difícil é entender como o poder se mantém entre os que não estão em uma situação como essa. Isso é o mais incrível. Por que o poder se mantém com apoio de pessoas que não se beneficiam com ele. Além disso, eu me situo nesse grupo social, me sinto refletida nos filmes, e é o que conheço mais, é mais fácil falar sobre ele. Classe média para mim define essa parte da população latino-americana, sobretudo de ascendência europeia, que naturalizou o racismo e uma forma de governo que são muito mesquinhas com respeito à grande base social de cada país.

No Brasil, a classe média está entre os que apoiam a intervenção militar no Rio de Janeiro, embora, como mostrou pesquisa recente do Datafolha, não a considere lá muito efetiva. Talvez a classe média deseje mais violência por parte da intervenção, das autoridades. O foco é sempre a violência, não a exclusão. A maior violência da América Latina é a exclusão. Há muita gente apartada dos benefícios do sistema. Muita gente, por muito tempo. Há famílias há cinco gerações sem trabalho. Como pretendem que não haja violência? Esse é o perigo da classe média: acreditar que a insegurança é o delito, na rua, e não a má distribuição de renda, de oportunidades, a má educação pública, a falta de acesso à saúde. E isso não se dá apenas no Brasil, mas em toda a América Latina. A barbárie se nota aí. Isso que aconteceu no Rio, o crime contra a Marielle Franco, é muito mais relevante que a queda das torres gêmeas em Nova York. Para o nosso continente, a tragédia de Marielle é muito mais significativa, pelo que representa para a nossa história e para milhares de pessoas por quem ela trabalhava, do que um atentado nos Estados Unidos. Foi um ato de violência que fez desaparecer uma mulher, um pensamento e uma ação.

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A maior violência da América Latina é a exclusão

Os índios aparecem em segundo plano no filme, como na verdade sempre estiveram desde a chegada dos europeus à América Latina. A questão indígena também é uma preocupação sua? Há uma índia no filme, mas porque busco sempre trabalhar com não atores, e ela atendia a uma necessidade, que era a de ter algum falante do idioma indígena que aparece em Zama. Sem dúvida, a comunidade indígena nunca foi incluída seriamente na história dos nossos países. Quando se fala da comunidade indígena, sempre se levantam os crimes cometidos pela colônia, o extermínio, mas o pior para os índios começou com os governos independentes, os governos criollos, porque aí se legitimou a exclusão da comunidade indígena. A situação que os índios vivem agora é o sintoma mais perfeito do falseamento da história da independência dos nossos países.

Zama tem coprodução brasileira e atores como Matheus Nachtergaele. Como vê o cinema feito no Brasil hoje? Não consigo ver tudo o que é produzido no Brasil, porque infelizmente sabemos quão pouco o cinema latino-americano circula pelo próprio continente. Mas acredito que o cinema brasileiro viva um momento muito inteligente. Boas políticas de governo permitiram que surgissem cinemas regionais. O Brasil é o único país que tem isso. Na Argentina, há agora uma pequena produção em Córdoba, mas a concentração se dá em Buenos Aires. A riqueza de uma cultura se nota quando os centros de produção não são apenas as grandes cidades.

É claro que as séries de hoje são melhores que as dos anos 1980, mas é um modelo narrativo muito parecido, e muito mainstream, só argumento, argumento, argumento. É um modelo baseado no plot point, turning point, é um modelo que apela menos à imagem e ao som, um modelo que em si mesmo é menos crítico

E o cinema argentino atual? Há muito cinema, há uma sensação de que as políticas que o Instituto de Cinema está tomando não vão favorecer as pequenas e médias empresas, porque estão impondo requisitos que somente grandes empresas podem cumprir para obter dinheiro. Outra coisa é que o cinema argentino, como todo o cinema mundial, tem sub-representado a tradição do país, porque só tem acesso ao cinema a classe média branca alta. Países tão diversos como os nossos, com o discurso audiovisual concentrado dessa classe média branca, é uma pobreza, um problema que é mais vergonhoso nos nossos países, porque somos uma sociedade muito diversa. É vergonhoso e um pouco alarmante.

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Pedro Almodóvar é um dos coprodutores de Zama. Ele deu sugestões para o filme? Ele deu um apoio financeiro pequeno, e não teve qualquer inferência no filme. Nunca mudei um filme meu por uma terceira pessoa.

Você já disse que as séries são um passo atrás, um retrocesso. Por que pensa assim? Não pode ser que as pessoas tão inteligentes desse planeta ignorem que no momento mais conservador enfrentado pela humanidade dos últimos 60, 70 anos, em que somos usados por empresas de big data, em que vemos um retorno nunca imaginado do nazismo na Alemanha, Donald Trump na Casa Branca, uma narrativa tenha se legitimado em grande velocidade e seja consumida por todo mundo, e não haja uma relação entre uma coisa e outra? Um mundo narrativo baseado no argumento, que despreza toda uma rica tradição narrativa construída pelo cinema e pelo documentário, que recua e se aferra outra vez ao roteiro. É certo que as séries são melhores do que a produção média da TV, são mais bem feitas e mais complexas, mas, se comparadas com a indústria cinematográfica de todos os países, não são melhores intelectualmente. É mais fácil de consumir, preenche o vazio da noite, dos casais, da família. Quantos matrimônios já foram salvos pelas séries? E quantos casamentos não têm sexo por causa das séries? O Vaticano deveria estar investindo nas séries.

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Diego de Zama (Daniel Giménez Cacho) espera notícias sobre a transferência que almeja (Reprodução/Divulgação)

Não concorda que a TV viva uma era de ouro? É claro que as séries de hoje são melhores que as dos anos 1980, mas é um modelo narrativo muito parecido, e muito mainstream, só argumento, argumento, argumento. É um modelo baseado no plot point, turning point, é um modelo que apela menos à imagem e ao som, um modelo que em si mesmo é menos crítico. Acontece que muita gente confunde ideia com argumento e até que isso passe vão pretender que a série seja o grande acontecimento do século XXI.

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O que pensa do atual momento das mulheres, com as denúncias de assédio em Hollywood? Na Argentina, estamos vivendo algo parecido. O que passa é que esse movimento das mulheres ricas, que desfilam pelo tapete vermelho, e agora se cansaram dos abusos e da falta de respeito, é genial, mas isso existe porque durante cem anos mulheres trabalhadoras e que não eram tão famosas escreveram, brigaram, lutaram por melhores condições para todas as mulheres. Se a vida das mulheres hoje é um pouco mais fácil é porque houve feministas que brigaram pelo direito ao voto, por melhores condições de trabalho. O movimento é bom, mas é a ponta do iceberg. Do outro lado, estão mulheres que não têm glamour e não são famosas.

 

Ficou chateada, aborrecida de ter ficado fora do Oscar? Eu? Não. Que coisas o Oscar premia?

Argentina e política são indissociáveis. Como a senhora vê o governo de Mauricio Macri? Este é um governo de gente em sua maioria educada em escolas privadas, distante de onde vive a maior parte da população. É um governo que pensa apenas nos ricos. Igual ao brasileiro, com o agravante de que aqui houve um golpe de Estado.

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