Mario Vargas Llosa se despede da ficção com o irônico ‘Dedico a Você Meu Silêncio’
O autor peruano encerra sua carreira, marcada por brilhantismo e posicionamentos polêmicos, com uma obra dedicada a seu país
O escritor peruano Mario Vargas Llosa, Nobel de Literatura em 2010, anunciou que Dedico a Você Meu Silêncio é seu último livro de ficção. Lançada em 2023, a obra é agora editada no Brasil pela Alfaguara. Aos 88 anos, o autor avisou que pretende ficar mais tempo com seus três filhos e sete netos. Disse ainda querer continuar lendo até quando sua saúde e disposição permitirem. Seu último ato antes de pendurar a pena será “um ensaio sobre Sartre”, seu “mestre na juventude”. Encerrará assim sua grandiosa carreira de vinte romances, catorze livros de ensaios, dez peças teatrais e mais um punhado de escritos que incluem contos, memórias e obras infantis. Com as mortes de Octavio Paz (1914-1998) e Gabriel García Márquez (1927-2014), Vargas Llosa é o único autor latino vivo detentor de um Nobel.
Depois do livro póstumo de García Márquez e como não parece haver nenhum inédito de Carlos Fuentes (1928-2012) ou Julio Cortázar (1914-1984), a sua despedida das letras encerra o ciclo do “boom latino-americano”, movimento literário que popularizou autores e obras latinas no mundo. Sob influência de Jorge Luis Borges (1899-1986), Juan Rulfo (1917-1986) e outros, Vargas Llosa e seus pares, com livros fundamentais, temas e técnicas inovadores, erigiram um totem e colocaram definitivamente os países pobres do continente no mapa literário. Talvez propositalmente, o título Dedico a Você Meu Silêncio soa irônico para o último de um conjunto de obras que seguirão dando o que falar, sendo lidas, estudadas e discutidas.
Frequentemente criticado no Peru por visitar pouco o país (ele mora em Madri e vive no exterior desde a década de 1960), Llosa despede-se da escrita literária com uma bela homenagem à sua terra natal. Dedico a Você Meu Silêncio conta a história de Toño Azpilcueta, um sujeito formado em uma das melhores universidades do país, mas que não conseguiu se firmar no meio acadêmico. Intelectual e pobre, Azpilcueta vive modestamente com sua mulher, Matilde, e as filhas Azucena e María na periferia de Lima. Enquanto Matilde costura, lava e passa, ele dá aulas de desenho e música para sobreviverem. Também tem seus rendimentos acrescidos com textos sobre música peruana em revistas especializadas e de pouca circulação. Entusiasta da canção criolla (ritmo de influências europeias, africanas e andinas), ele conhece toda sua genealogia, variações e artistas. Pouco tempo após ouvir o jovem e brilhante violonista Lalo Molfino, Azpilcueta é informado que o músico morreu sozinho e foi enterrado como indigente. Indignado com o falecimento de um jovem talento que não teve o reconhecimento merecido, ele decide escrever a biografia de Molfino.
Os leitores de Vargas Llosa rapidamente vão reconhecer uma de suas técnicas narrativas favoritas, também usada em A Festa do Bode, Cinco Esquinas e outros. Nessas obras e na atual, o autor conduz duas histórias em paralelo, uma que percorre os capítulos ímpares e outra, os pares. Ambas as tramas vão se imbricando e se complementando, com seus conteúdos altamente dependentes uns dos outros. Não cabe aqui a acusação a um autor de 88 anos de estar se repetindo. Afinal, foi ele um dos responsáveis em desenvolver e popularizar o formato. E a técnica, mais uma vez, funciona. Enquanto uma história conta as peripécias de Toño Azpilcueta para escrever seu livro, a outra é justamente a obra que o protagonista está redigindo. É na biografia de um músico obscuro que Azpilcueta destila suas ideias mais geniais e tresloucadas a respeito da cultura, sociedade e história do Peru. Para ele, a mestiça música criolla tem o poder de unificar um país tão racista quanto desigual. A arte aliada à huachafería seria “a grande contribuição do país à cultura universal”. Huachafería, conceito intraduzível que só existe no Peru, nas palavras de Azpilcueta: “É uma maneira de entender o mundo de uma forma diferente, um pouco mais ingênua e mais terna que as outras, menos culta, porém mais intuitiva, e muito característica de cada classe social”. Nada modesto e algo singelo, Toño Azpilcueta acredita ter a cola que unificará o país, o elemento que não apenas explica, mas dá coesão ao Peru. É uma bonita utopia. Mas, como todas as utopias, é irrealizável.
Nos últimos tempos, é verdade que as posições políticas de Vargas Llosa, incluindo uma lamentável guinada à extrema direita, passaram a ser quase tão comentadas quanto seu trabalho. Tal postura pode macular, mas não cancelar o tamanho de seu legado. Títulos como Conversa no Catedral (1969), A Guerra do Fim do Mundo (1981) e Pantaleão e as Visitadoras (1973) fazem parte de qualquer antologia respeitável de literatura em língua espanhola. Um gigante se retira de cena — mas sua obra continua a ecoar pelo mundo.
Publicado em VEJA de 1º de novembro de 2024, edição nº 2917