No Vale do Silício, na Califórnia, a engenheira de software Lily Chan (Sonoya Mizuno) e seu namorado, o analista de inteligência artificial Sergei (Karl Glusman), viajam de ônibus junto com outras mentes brilhantes para a sede da Amaya, gigante da tecnologia especializado em computação quântica. Estampado na lateral do veículo está o rosto-símbolo da companhia: uma garotinha de olhos azuis penetrantes e um rabo de cavalo com cachos loiros. Quando a empresa irrompe em meio à floresta, uma estátua imensa da mesma criança surge entre o topo das árvores. Mais assustadora que adorável, a figura infantil representa a filha do CEO Forest (Nick Offerman), um gênio de feições inexpressivas, rendido ao luto pela morte da menina. Sergei está ali porque foi promovido por Forest. Mas a realização do sonho se esvai logo no primeiro episódio de Devs, exibido nas noites de quinta-feira no Fox Premium 1 e disponível no aplicativo Fox. Horas após entrar no projeto ultrassecreto que dá nome à minissérie, Sergei morre. Caberá à sua namorada descobrir a verdade.
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Mas, nas histórias do provocativo inglês Alex Garland — criador, roteirista e diretor do programa de oito redondos episódios —, a palavra verdade costuma ter significado relativo. Religião, filosofia e leis da física se entrelaçam no roteiro de poucos diálogos, visual minimalista e trilha hipnotizante. A combinação resulta em um viciante thriller psicológico, que mostra o que há de pesadelo por trás das promessas de avanços redentores da tecnologia. Garland se consagrou como escritor de livros como A Praia, de 1996. Foi no perturbador filme Ex_Machina: Instinto Artificial (2014), contudo, que se estabeleceu como um entusiasta cauteloso da tecnologia, que instiga e assombra seus personagens.
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Ex_Machina usava o desabrochar de um androide manipulador como mote para falar dos dilemas éticos do gênio criador diante da sua criatura supostamente pura (e sensual). Em Devs, Garland se vale dos postulados da mecânica quântica para mergulhar em temas como a dor causada pela morte e o embate entre livre-arbítrio e determinismo. Mas esses fios convergem para um objetivo maior: examinar o poder estarrecedor dos magnatas da área. “Essas empresas trabalham com mentalidade de império. Torço por uma regulamentação que as obriguem a se comportar”, disse a VEJA Nick Offerman, ator conhecido pela comédia Parks & Recreation — e que aqui tem atuação soturna como o CEO Forest.
O misterioso projeto Devs (nome só explicado no último episódio) é simbolizado por um portentoso prédio, comparável a um templo bíblico high-tech. Com interior banhado a ouro e um laboratório envolto em escudo eletromagnético, a estrutura impede vazamento de informações e reforça o poderio da máquina quântica em seu núcleo. A função do computador todo-poderoso é revelada aos poucos (e espectadores interessados em teorias sobre multiversos e manipulação do espaço-tempo vão se fartar). Em meio a terminologias complexas e qubits (unidade de medida quântica), descortinam-se defeitos morais tão humanos — os quais a tecnologia mais realça que ajuda a sanar.
Publicado em VEJA de 2 de setembro de 2020, edição nº 2702
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