Em maio de 1606, o genial e encrenqueiro Michelangelo Merisi — ou, simplesmente, Caravaggio (1571-1610) — entrou em uma briga violenta com um cafetão chamado Ranuccio Tomassoni. Provocado por uma partida de jogo ou uma disputa amorosa, teorizam estudiosos, o combate acabou com o assassinato de Tomassoni e uma caçada a Caravaggio: como punição, qualquer pessoa nos estados papais poderia matar o pintor barroco e oferecer sua cabeça como prova. Amedrontado, Caravaggio fugiu de Roma e fez um périplo pelo país: nos quatro anos seguintes, esteve em Nápoles, Malta, Sicília e retornou a Nápoles antes de partir para Porto Ercole, na Toscana, onde morreu em julho de 1610. Antes disso, no entanto, produziu obras como a magistral Salomé com a Cabeça de João Batista (1609-1610) e, dois meses antes da viagem final, deu suas derradeiras pinceladas no glorioso O Martírio de Santa Úrsula — estrela da mostra O Último Caravaggio, que acaba de entrar em exibição na National Gallery de Londres.
A representação de Santa Úrsula é a pintura documentada mais próxima da data de sua morte. Inicialmente atribuída a pupilos de estilo caravaggesco, a obra só foi apontada como sendo dele nos anos 1980, depois que cartas preservadas em Nápoles, e datadas de maio de 1610, revelaram que fora encomendada a Caravaggio por Marcantonio Doria (1572-1651), então príncipe de Angri. Mais tarde, a autoria foi reforçada pelo achado de inscrições no verso do quadro: a assinatura póstuma d. Michel Angelo da/Caravaggio 1616 e as iniciais M.A.D., adornadas por uma cruz, escritas após a morte do dono, em 1651, reforçando a encomenda do nobre ao pintor.
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Sob posse da família original durante séculos, a pintura ficou pendurada despercebida no Palazzo Doria d’Angri até o século XX, e passou para outra coleção particular ao ser adquirida como parte de uma villa antes pertencente ao clã. Publicamente, só foi revelada em 1963, em uma exposição em Nápoles, ainda sem a autoria de Caravaggio. Hoje pertencente ao Banco Intesa Sanpaolo, a pintura fica exposta na Gallerie d’Italia, na Via Toledo, em Nápoles, de onde foi retirada para a mostra inglesa.
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Com o jogo de luz e sombras típico do mestre, a pintura captura Santa Úrsula pouco antes de seu martírio. Diz a crença que ela e um grupo de virgens que a seguiam foram capturados e mortos pelos hunos. O rei teria se oferecido para salvar a vida de Úrsula casando-se com ela, mas a moça recusou a oferta e foi morta por uma flecha. Acima da mulher martirizada, surge um provável autorretrato do artista, que costumava se pintar de modo trágico nas obras — aqui, aparece desfigurado e pálido assistindo à cena. “É nosso último vislumbre de um homem desesperado emergindo de um dos momentos mais conturbados de sua vida”, escreve a curadora Francesca Whitlum-Cooper.
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A falta de vitalidade não é à toa: meses antes, ao sair de uma taverna, ele foi surpreendido por inimigos e ferido no rosto com golpes tão graves que suas feições se tornaram quase irreconhecíveis. Morreu pouco depois, possivelmente vítima de uma sepse adquirida através de um ferimento de outra briga, sugerem pesquisas recentes. O epitáfio do gênio é tão trágico quanto sua obra.
Publicado em VEJA de 26 de abril de 2024, edição nº 2890