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Mulheres invisíveis (e poderosas) no Masp

O museu paulista apresenta um delicioso painel de artistas femininas esquecidas pela história, mas de força extraordinária

Por Marcelo Marthe Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 15h58 - Publicado em 23 ago 2019, 06h30

Para alguém do sexo feminino, Judith Leyster alcançou projeção notável na Holanda do século XVII. A pintora era dona do próprio ateliê e obteve sucesso e respeito numa terra de grandes artistas. Mas sua audácia foi além: ela protagonizou uma rumorosa disputa com um “macho” bem estabelecido no ramo, o veterano Frans Hals. Judith moveu um processo contra Hals porque um aluno se bandeou para o ateliê do rival dias depois de ser contratado por ela. A história pregaria uma peça na artista: depois de sua morte, a fama foi se apagando até lançá-la em total esquecimento. Enquanto isso, Hals permaneceu o mestre reconhecido de sempre — e a ele se creditaria erroneamente, até o século XIX, um quadro marcante de Judith. Alegre Companhia, que retrata um trio de animados rapazes, resume o espírito de Histórias das Mulheres: Artistas até 1900. A nova mostra em cartaz no Masp é deliciosa — e reveladora.

Vinda na esteira da retrospectiva arrasa-quarteirão de Tarsila do Amaral, que atraiu mais de 400 000 pessoas, Histórias das Mulheres não só prossegue na toada feminina do museu paulistano em 2019: funciona como contraponto à obra ultrapopular da criadora do Abaporu. Cobrindo do Renascimento italiano ao impressionismo, das tecelagens pré-colombianas à pintura inglesa do século XIX, os quase 100 itens da exposição iluminam artistas que são, na maior parte das vezes, ilustres desconhecidas. A garimpagem das “mulheres invisíveis” em coleções que vão da Tate Modern, em Londres, ao Museu D’Orsay, de Paris, requereu esforço inusitado. “Por muito tempo, algumas obras apareceram nos arquivos com o nome dos maridos ou dos donos de ateliês, não das verdadeiras autoras”, diz Lilia Schwarcz, uma das curadoras.

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RAINHA DA COCADA – A ‘Cleópatra’ de Artemisia Gentileschi: altivez barroca (Thomas Hennocque/.)

A mostra no Masp engrossa uma tendência forte pelo mundo afora: as exibições que se propõem a reparar injustiças históricas contra determinados grupos sociais. Uma recente exposição no Museu D’Orsay pretendia revisar o modo preconceituoso como os negros foram representados por artistas do passado. Atualmente, o MoMA nova-iorquino investe em uma controversa ampliação para dar à produção dos países em desenvolvimento o mesmo “espaço nobre” da arte europeia. Na mostra do Masp, o discurso engajado é comedido. Contribui para isso a decisão de concentrar toda a “lacração” — os arroubos da militância estridente — em uma mostra paralela de artistas feministas contemporâneas em outro espaço do museu.

Tirando-se o véu da lacração, é possível apreciar a exposição paulistana por aquilo que ela oferece de realmente precioso: a chance de descobrir e se surpreender com personagens que foram não apenas mulheres, mas artistas extraordinárias. Já no século XVI a pintora Catarina van Hemessen produzia retratos da aristocracia flamenga, nos quais fazia questão de registrar a idade da personagem (em obra pertencente a um colecionador americano, a moça de identidade desconhecida e olhos tortos tinha 27 anos). Ligeiramente mais nova, a renascentista italiana Sofonisba Anguissola (1532-1625) foi provavelmente a primeira mulher a ganhar notoriedade na arte. Admirada por Michelangelo, ela era também exímia retratista. Sua compatriota Artemisia Gentileschi exibia a alma torturada típica do barroco, no século XVII. É dela uma tela que retrata Cleópatra, a rainha do Egito, em pose altiva e envolta num manto azul esvoaçante (aos mais maliciosos: o seio de fora não é apelo à sensualidade, mas símbolo de virtude no mundo antigo).

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OBRAS-MASP-FEMINISTAS
ELAS POR ELAS – Acima, a partir da esquerda, retratos de mulheres feitos pela inglesa Mary Beale, pela flamenga Catarina van Hemessen e pela ucraniana Anna Bilinska-Bohdanowicz; ao lado, os rapazes festeiros de Alegre Companhia, da holandesa Judith Leyster: garimpagem surpreendente (Cortesia Philip Mould and Company; John Berens; Ligier Piotr; Cortesia The Klesch Collection/Divulgação)

Apesar da Cleópatra de aparência “empoderada”, seria um anacronismo enxergar traços politizados nessas artistas d’antanho. Não que várias delas não fossem mulheres de personalidade. A inglesa Mary Beale (1633-1699) conquistou lugar como retratista da corte com suas pinceladas de sutis tons terrosos. Em matéria de imponência, nenhuma supera a francesa Élisabeth Vigée-Lebrun. Pintora oficial da rainha Maria Antonieta, ela se aproveitou da sua condição de mulher para mergulhar na intimidade real e, depois da Revolução de 1789, conseguiu fugir enquanto a patrona perdia a cabeça na guilhotina. Em um autorretrato, surge com paleta na mão e olhar de femme fatale.

É a partir do século XIX, finalmente, que as artistas passam a ostentar uma agenda mais próxima do feminismo moderno. Ativa na luta pelo direito de voto das mulheres, a inglesa Emily Osborn (1828-1925) fez trabalhos de denúncia social como o estupendo Sem Nome e sem Amigos, que mostra uma pintora paupérrima tentando vender suas telas a um galerista. Acompanhada do filho, ela tem ar sofrido e usa um vestido sujo de lama. Em obras assim, mulheres invisíveis revelam visões poderosas.

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Publicado em VEJA de 28 de agosto de 2019, edição nº 2649

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