Nelson Motta: “Me considero ultraprivilegiado”
Prestes a completar 80 anos, o escritor e crítico conta como adaptou a vida de Tom Jobim para um musical
Como encarou a responsabilidade de adaptar a vida de Tom Jobim para um musical que acaba de estrear no Teatro Casa Grande, no Rio? É um sonho antigo, mas muito desafiador. A obra de Tom Jobim (interpretado por Elton Towersey) é avassaladora. A maior dificuldade que eu e Pedro Brício tivemos ao escrever é que a vida dele não teve sobressaltos ou dramas. É serena. Dramaturgicamente, isso não é bom. E é aí que entra o Vinicius de Moraes (Otávio Müller), um cara mais aventureiro, que narra o espetáculo. Não fizemos teatrinho. É uma produção grandiosa, dividida em três atos.
A morte de Tom completa trinta anos. É possível mensurar a importância dele para o Brasil? É imensurável e cresce cada dia mais. Com o tempo, novas gerações surgem a partir de Tom. Gilberto Gil, Chico Buarque, João Bosco foram alguns deles. Agora, tem esses garotos, digamos, mais cool, como Silva e Rubel, que têm muito de Tom. A tendência é continuar crescendo.
O senhor acompanhou de perto a gênese de vários movimentos da MPB. Foi sorte ou um privilégio? Me considero ultraprivilegiado. Tive boa educação e vim de família de classe média. Mas também digo que tive sorte, o que não tira meus méritos. Já refleti sobre a “ética da sorte” e concluí que quem a recebe não tem, necessariamente, merecimento. É aleatório. Um bandido que troca tiros com a polícia e escapa vivo tem sorte. Ela não tem moral. É um mistério. Como crítico musical, eu tive sorte de testemunhar a história da música brasileira sendo feita.
Críticos não costumam ser benquistos entre os músicos e, no entanto, o senhor tem bom relacionamento com todos. Qual o segredo? É possível ser respeitável sem escrever textos devastadores. Meu espaço é precioso demais para gastar falando de coisas ruins. O que é ruim eu desprezo, não toco no assunto. O benefício colateral é que só fiz amigos entre os artistas.
O senhor também lançou neste mês Corações de Papel, livro com cartas de amor que trocou com uma namoradinha nos anos 1960. Por que publicá-las? Porque era uma boa história, tinha bons personagens, um triângulo amoroso, viradas, suspenses — e um final surpreendente. Também porque, como avaliou a Ana Luisa (a namorada em questão), as cartas tinham algum valor literário. Claro que pedi sua autorização com o texto pronto, e ela respondeu em latim: “Nihil obstat”, nada impede. Foi o imprimátur.
Publicado em VEJA de 25 de outubro de 2024, edição nº 2916