No confinamento, crianças e jovens recorrem a games que imitam a vida real
Em período de aulas suspensas, o contato social é mantido com a ajuda da tecnologia
Bastaram algumas semanas de quarentena para chegar a uma constatação rigorosamente incontornável: o novo coronavírus não está afetando só a saúde das populações. Ele já representa um dos choques mais impressionantes de que se tem notícia nas relações sociais. No âmbito dos surtos epidêmicos contemporâneos é, de longe, o de maior impacto. Há desde familiares e amigos lançando mão de apps para conseguir manter certas atividades conjuntas — de almoços de domingo a comemorações de aniversário — até bares que transmitem shows ao vivo a fim de que o cliente se sinta ali, numa mesa. Definitivamente, o “virtual” se tornou o “normal” neste mundo de socialização reconfigurada.
Surpreendidos de uma hora para outra com a suspensão das aulas, cerca de 45 milhões de crianças e adolescentes brasileiros se encontram atualmente dentro de casa. Para driblarem o rompimento abrupto de sua rotina — e, consequentemente, de parte substantiva de seus laços sociais —, eles têm recorrido a algo indissociável desta geração: os games que simulam o mundo real. Criando universos próprios, conseguem, por exemplo, ir ao colégio e até descobrir o que fazer ao suspeitarem estar com a Covid-19.
Coronavírus em um videogame? E por que o espanto se a ideia é mesmo mimetizar a realidade? Um dos exemplos desse, digamos assim, novo modo de viver é apresentado pelo youtuber Ricardo Dinata, que tem 1,54 milhão de inscritos em seu canal no site de vídeos. Nele, Dinata faz gravações de uma prática do universo dos games conhecida como “roleplay”, que consiste exatamente em viver num mundo virtual o cotidiano do mundo real, imitando atividades e interações comuns deste lado de cá da existência — a vida como ela é.
Em uma modificação feita por fãs do jogo Grand Theft Auto 5 (GTA), no qual se escolhe o desafio que se deseja enfrentar, o youtuber mostra a saga do personagem que ele interpreta para saber se tem Covid-19 — com direito a hospital lotado e orientações dos órgãos de saúde. O episódio acaba retratando uma cidade tomada pelo pânico. Em sua residência, os seguidores do canal podem viver uma aventura semelhante ao instalar a mesma versão do videogame de Dinata. “Poder recriar temas específicos em jogos ajuda as crianças a entender melhor o mundo em que vivem”, diz o youtuber.
O peso dos games no atual cenário de pandemia está, é claro, longe de se limitar ao Brasil. Tome-se o caso do Japão como exemplo. Lá, por causa do novo coronavírus, as escolas não puderam realizar suas tradicionais formaturas, que ocorrem entre os meses de março e abril. Alguns estudantes, no entanto, encontraram uma solução: recriaram o auditório de eventos do colégio no popular Minecraft, famoso entre a garotada. O pai de uma das crianças postou no Twitter o vídeo de seu filho — um aluno do que seria o nosso ensino fundamental — participando da formatura dentro do jogo e recebendo o canudo da conclusão de sua série. Tudo virtual, obviamente. “Agora, ele está todo dia se reunindo com os amigos, rindo e se divertindo. Isso me parece bom”, escreveu o pai em sua conta na rede social.
Há, contudo, uma preocupação diante do novo hábito. O tempo maior que crianças e adolescentes passaram a ficar entretidos com os videogames alertou os fabricantes de que poderiam, naturalmente, faturar mais com isso. Com a adição de novos itens virtuais, que podem melhorar os jogos, como ocorre no GTA, eles estimulam o público a investir no game. Recentemente, a estratégia deu problema. Em 2018, um garoto do País de Gales gastou o equivalente a 6 000 reais com extras da atração Fortnite — tudo pago com o cartão da mãe. Nada menos virtual.
Publicado em VEJA de 15 de abril de 2020, edição nº 2682