Novas edições celebram os 70 anos do genial golpista Tom Ripley
As obras que lançaram o personagem de Patricia Highsmith provam que ele ainda é o pilantra mais charmoso da literatura

Tom Ripley, um dos psicopatas mais queridos da história da literatura (e do cinema), está completando sete décadas em 2025. O Talentoso Ripley, livro que lançou o personagem, foi publicado em março de 1955, quando a autora Patricia Highsmith (1921-1995) tinha apenas 34 anos e já despontava como uma escritora de raro talento. Seu romance de estreia, o thriller Pacto Sinistro (1950), havia conquistado público, crítica e cativado o diretor Alfred Hitchcock, que o adaptou para o cinema em 1951. Longe do ostracismo, Ripley chega aos 70 em grande forma. A editora Intrínseca está relançando os três primeiros livros da série agora em março: O Talentoso Ripley, Ripley Subterrâneo e O Jogo de Ripley. As duas últimas histórias com o personagem — O Garoto que Seguiu Ripley e Ripley Debaixo d’Água —, há muito tempo fora de catálogo no Brasil, serão publicadas no ano que vem, fechando a clássica pentalogia.

Ao conferir os três livros na ordem correta, os leitores vão notar o amadurecimento e a transformação do personagem. No primeiro romance ele é um pequeno estelionatário vivendo à margem do glamour da Nova York dos anos 1950. Por um golpe de sorte, acaba escolhido para ir em uma missão peculiar à Itália. No segundo e, principalmente, no terceiro volume, Ripley aparece transmutado em um homem cosmopolita e poliglota. Fala inglês, italiano, francês e alemão, entende de arte e música clássica, lê filosofia e literatura, se interessa por decoração e é um rosto conhecido nos melhores hotéis das capitais europeias. Ele surge casado com uma rica herdeira francesa e passa seu tempo pintando, bebendo (muito) e cuidando do jardim de uma bela casa no interior da França. Até suas mutretas ficam muito mais sofisticadas, envolvendo falsificações de quadros, empresas de fachada e contas secretas na Suíça.
Traçar paralelos entre o personagem e a vida da autora é um dos passatempos prediletos dos três biógrafos que já retrataram Highsmith. Ela era a filha indesejada de uma mãe solteira, oriunda de uma família falida. Assim como Ripley, fascinava-se pela elite na mesma medida em que desprezava seus códigos. Foi só depois do sucesso de seu primeiro livro que conseguiu viajar à Europa pela primeira vez. Na Itália, encantou-se pela Costa Amalfitana, no sul do país. Foi a inspiração para Mongibello, cidade fictícia do primeiro livro com o personagem.

Numa época em que a homossexualidade ainda era crime em muitos países (inclusive nos Estados Unidos), ela não saiu do armário. Teve alguns relacionamentos com homens, mas nunca escondeu sua preferência por mulheres. Parte do preconceito e da pressão que sofreu por sua sexualidade está presente em Ripley. Nos livros, ele se sente atraído por outros homens e tem dúvidas sobre sua masculinidade, mas luta para reprimir seus desejos, algo que dá mais complexidade ao personagem. “Escrever é um substituto para a vida que não posso viver”, anotou a autora em seu diário, em 1950.
Até onde se sabe, Highsmith nunca assassinou ninguém. Mas ela extravasou seu lado sombrio criando histórias e personagens violentos, com um grau de psicopatia difícil de encontrar mesmo entre mestres do gênero policial. Famosa por ter uma personalidade abertamente desagradável, com muitas amostras públicas de misantropia, Highsmith deu vida a um adorável cafajeste. Ripley é um assassino meticuloso, mas, diferentemente da autora, é faixa preta em soft skills. Agradável e inteligente, sabe conquistar as pessoas. A saga do órfão pobretão que subverte o conceito de self-made man, tão caro à cultura anglo-saxã, para se transformar num self-made pilantra continua muito interessante aos olhos do público atual. Prova disso, além da constante reedição dos livros, é a recente Ripley, caprichada produção da Netflix. Com o irlandês Andrew Scott como protagonista, a adaptação tem uma fotografia esmerada e é a mais fiel à história do livro.

Interpretar Tom Ripley, com toda a sua profundidade psicológica, inteligência fria e rompantes de violência, deve ser tão atraente quanto desafiador. Matt Damon esteve à altura do papel em O Talentoso Ripley, bom filme de 1999. O ótimo John Malkovich se esforça, mas não consegue salvar o irregular O Retorno do Talentoso Ripley (2002), livre adaptação do terceiro livro da série. Já o francês Alain Delon, apenas cinco anos após a edição do livro, em 1960, encarnou um Ripley luminoso e assustador no ótimo O Sol por Testemunha. Influenciada pelo anti-herói Meursault, o assassino confesso de O Estrangeiro, de Camus, Highmisth criou um ser ainda mais vil e perigoso, justamente por ser tão magnético. Com Ripley, ela leva o público a torcer pelo vilão, simpatizando com um assassino. Poucos autores conseguem criar tamanho jogo de alteridade, proporcionando aos leitores uma experiência tão forte e rica. Aos 70, o golpista continua genial como sempre.
Publicado em VEJA de 28 de fevereiro de 2025, edição nº 2933