O escritor americano Mark Twain (1835-1910) afirmou certa vez que a “realidade é mais estranha que a ficção”. Isso porque a ficção, para ser crível, deve fazer sentido — regra que a vida real não faz questão de seguir. Em A Crônica Francesa (The French Dispatch/Estados Unidos, Alemanha/2021), já em cartaz no Brasil, a estranheza da realidade casa em regime de comunhão de bens com o mundo exuberante criado pela mente de Wes Anderson. Dono de um apreço particular, quase infantil, pelo absurdo, o diretor americano encontrou para seu novo filme uma fonte saborosa de matéria-prima no jornalismo literário — filão no qual histórias reais são narradas de forma detalhada e longa, com cores de aventura, romance e comédia, entre outros gêneros pouco usuais na dinâmica prática e veloz de uma redação jornalística.
The Wes Anderson Collection: The Grand Budapest Hotel
Inspirado diretamente na renomada revista americana The New Yorker, o fictício A Crônica Francesa é um periódico mensal produzido por profissionais dos Estados Unidos que vivem na inventada cidade de Ennui-sur-Blasé, na França. Criada por Arthur Howitzer, Jr. (Bill Murray), a revista circula entre 1925 e 1975. Seu fim é decretado junto com a morte de Howitzer: o editor exige em testamento que seu obituário seja também o texto de despedida da publicação. Ao lado do corpo do chefe (literalmente), os colegas de trabalho tecem juntos suas memórias. A ação é intercalada por três grandes reportagens, que vão da política à culinária, filmadas com a agilidade típica do diretor. Nas mãos de Anderson, as câmeras estão em constante movimento, assim como os cenários, em um jogo teatral. Inventivo, o diretor chega a trocar dois atores em cena, diante do espectador, um mais jovem (Tony Revolori) e outro mais velho (Benicio Del Toro), para marcar a passagem de onze anos na história.
The Wes Anderson Collection: Isle of Dogs
Leitor fiel da The New Yorker desde o ensino médio, Anderson faz aqui uma escolha curiosa. Em vez de adaptar as tramas publicadas pela revista, um caminho óbvio para uma homenagem, o diretor privilegia os jornalistas. Enquanto as histórias são fruto de sua imaginação, a maior parte dos personagens é inspirada em profissionais ilustres que passaram pela publicação, do dramaturgo Tennessee Williams (1911-1983) e o ativista James Baldwin (1924-1987) até a crítica de arte Rosamond Bernier (1916-2016) — personagem que por si só merecia um filme: foi aluna de Frida Kahlo, amiga de Picasso e Matisse e ativa na divulgação da arte europeia no pós-Guerra.
Rosamond é vivida com brilho por Tilda Swinton, que, no longa, traça um perfil sobre um pintor assassino e talentosíssimo (Del Toro), descoberto na prisão por um marchand detido por sonegação fiscal (Adrien Brody). A trama cômica é seguida por uma de tom político, quando uma repórter veterana (Frances McDormand) se envolve mais do que deveria com um movimento estudantil liderado por dois jovens idealistas e ingênuos (Timothée Chalamet e Lyna Khoudri). A última reportagem se revela uma espécie de thriller, quando o crítico culinário (Jeffrey Wright) acaba inadvertidamente envolto numa ação policial com gângsteres, prostitutas e o sequestro de uma criança. Distintas entre si, as tramas são tão representativas da grife Wes Anderson quanto a presença de estrelas em um elenco abarrotado de gente, e as cenas, obsessivamente simétricas. Para ele, o mundo é um campo minado de dificuldades e dores, no qual realidade e ficção se misturam de uma forma peculiar e poética.
Publicado em VEJA de 24 de novembro de 2021, edição nº 2765
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