Novo Mundo: o que é real e ficção na novela
Com sua combinação de figurões reais da pátria e invenciones extravagantes, a novela das seis testa os limites da recriação ficcional do passado
A vinda da princesa austríaca Leopoldina ao Brasil, em 1817, foi recriada com luxo no primeiro capítulo da novela Novo Mundo. Vivida por Leticia Colin, a futura esposa de dom Pedro I ganha festa de despedida num palácio europeu, com show de artistas mambembes e distribuição de barras de ouro à bandejada para os convivas. Para gravar a sequência da nova trama das 6, em exibição há três semanas, a Globo fez cair neve artificial sobre carruagens e construiu uma réplica da caravela portuguesa que, pouco depois do banquete, conduziria Leopoldina ao Rio de Janeiro. Tudo impecável, exceto por um detalhe: quase nada disso consta dos livros de história. A festa para Leopoldina ocorreu, na verdade, em Viena, cidade natal da princesa. A oferta de barras de ouro à nobreza austríaca foi feita por meios mais protocolares — não se tem notícia da distribuição dos mimos na festa, como se fossem bem-casados. Há também um descompasso temporal: entre sua saída de Viena e o embarque no porto italiano de Livorno, Leopoldina amargou semanas de espera na casa de uma irmã, em Parma. Embora não fique claro na novela, os autores Theresa Falcão e Alessandro Marson garantem que sua festa ficcional aconteceu na mesma Parma — evitando assim o deslize de inventar um porto em Viena. Mesmo assim, é preciso ser crédulo: a distância entre Parma e Livorno é de mais de 200 quilômetros, o que tornaria espantoso o embarque da princesa logo na manhã seguinte. Por fim, há um tropeço meteorológico. “Era verão e fazia um calor absurdo na Itália. Neve não faz sentido”, esclarece o historiador Paulo Rezzutti, autor de uma recém-lançada biografia da princesa. Com liberdades assim, Novo Mundo vem engrossar um filão robusto: a teledramaturgia que explora o que se pode chamar de história alternativa.
Se a fé irracional em notícias falsas veiculadas nas redes sociais instituiu a era da pós-verdade, eis que um certo equivalente vigora hoje na televisão: é a idade de ouro da “pós-história”. O exemplo mais acabado é a série americana Outlander, fantasia romântica de enorme sucesso em que uma mocinha viaja no tempo para interagir (inclusive sexualmente) com vultos históricos da Escócia do século XVIII. Com Novo Mundo, a Globo faz a pós-história à brasileira. Leopoldina, dom Pedro (Caio Castro) e sua amante, a marquesa de Santos (Agatha Moreira), formam um triângulo amoroso — noção em si duvidosa, já que casamentos de príncipes e princesas eram fruto de arranjos políticos, não de paixão. “Sentimentos não faziam parte da agenda. Leopoldina até se apaixona, mas não é correspondida. Para dom Pedro, ela era apenas a mãe de seus filhos”, ensina a historiadora Mary del Priore. Ao lado do trio e de outras figuras reais do passado pululam personagens puramente ficcionais que influirão até na proclamação da Independência — notadamente, o par romântico formado pela inglesa Anna (Isabelle Drummond) e o brasileiro Joaquim (Chay Suede).
É óbvio que ceder às licenças poéticas é imperativo na ficção. “O trunfo é recontar a história em ritmo de aventura de capa e espada. Não estamos fazendo documentário no canal Futura”, diz Theresa Falcão. O fato de se tratar do horário das 6 também justificaria, vá lá, a opção por tornar o triângulo dom Pedro-Leopoldina-marquesa de Santos tão cor-de-rosa: a conduta abusiva do príncipe em relação à esposa e a lascívia com que se entregava à amante seriam proibitivos nessa faixa da TV aberta.
Isso não exime a empreitada pós-histórica da culpa por jogar o espectador num terreno movediço: no meio de tanta informação, como separar as baboseiras dos fatos? “Desde que a novela começou, não paro de receber consultas de pessoas querendo saber se esse ou aquele detalhe fazem sentido”, diz Paulo Rezzutti. Às vezes, isso pode mesmo fundir a cuca. Seria um anacronismo mostrar gente de óculos escuros no Rio do começo do século XIX? Não. Navegantes e oficiais europeus como o fictício capitão inglês Thomas Johnson (Gabriel Braga Nunes) já os usavam para amenizar os efeitos do sol tropical. O mesmo não se pode dizer do flagrante de um celular numa cena de Isabelle Drummond: aquilo foi só um vacilo violento da produção da Globo (e nem vamos comentar a balbúrdia dadaísta de sotaques lusitano, carioca, alemão).
Enquanto a controvérsia fica nesses pormenores ou nas simplificações em nome do ritmo da trama, tudo bem. É um mal menor resumir vários eventos em uma única festa de despedida de Leopoldina. O problema é quando a ficção cruza uma linha capaz de abalar um pilar intransponível da história ou da geografia: neve em pleno verão italiano é demais. E é ainda mais enganoso moldar a história à visão “antropoliticamente correta” de hoje. A novela avança esse sinal ao mostrar dom Pedro como um amigão da causa indígena. “Não temos notícia de qualquer interesse dele por índios”, diz Mary del Priore.
O mérito desse tipo de ficção ainda é o de estimular a curiosidade sobre a história. “Gente que nem sabia que o Brasil teve príncipes e princesas passou a se interessar”, diz Rezzutti. E para o espectador que prefere desligar seu sensor histórico e embarcar na fantasia abilolada, o guia ideal é a personagem de Ingrid Guimarães. Como vários outros tipos em cena, a divertida golpista portuguesa Elvira Matamouros ilustra o destemor de Novo Mundo em mostrar o lado feio da história. “A gente fica desprovido de vaidade. Estou adorando aparecer sempre suada, de cabelo ensebado”, diz Ingrid. A maior marca da personagem é ser totalmente sem noção. “É incrível como ela acredita na sua realidade paralela”, diz. A ópera pós-histórica tem aí seu melhor resumo.
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