Por alguma virada de chave que certamente tem a ver com a ausência de filtros das redes sociais, nas quais se dialoga e se monologa sem que um olhe na cara do outro e o baixo calão é regra, o palavrão, esse termo tão condenado nos ambientes sérios, tomou conta das livrarias, exibido com destaque — e asteriscos — na capa de um sem-número de publicações, a maior parte enquadrada no segmento de autoajuda. O movimento de superação pessoal amparado em expressões desbocadas é capitaneado pelo fenômeno de vendas A Sutil Arte de Ligar o F*da-se, em que o americano Mark Manson ensina ao leitor que não dá para todo mundo ser feliz o tempo todo e… bem, a conclusão está no título. Publicado no Brasil no fim de 2017, no ano seguinte o livro se sagrou o mais vendido no país. Atualmente, junto com F*deu Geral, um texto recém-lançado que procura amparar a tese original em pesquisas, Manson crava 1,3 milhão de exemplares distribuídos no Brasil — no mundo, passa dos 9 milhões.
Boa parcela desse sucesso é creditada ao termo que faz com que os pais ameacem lavar a boca dos filhos com sabão. “O palavrão reflete irreverência e sugere uma linguagem mais próxima do leitor, algo muito valorizado hoje em dia no mercado editorial”, explica Cristiane Ruiz, editora de aquisição da Intrínseca, que publicou as obras do blogueiro americano. Misturar literatura com palavreado chulo é mérito atribuído a François Rabelais, escritor francês da época do Renascimento que, reproduzindo o modo de falar do homem do povo, criou a obra-prima Gargântua e Pantagruel, coletânea de cinco romances satíricos que contêm listas e listas de palavrões, alguns deles especialmente inventados. A prosa irreverente manteve Rabelais afastado dos meios intelectuais de seu tempo, mas não impediu que ele viesse a fazer parte dos grandes nomes da literatura clássica da França. A diferença entre o uso progressivo de obscenidades em textos literários e o fenômeno atual das capas com asteriscos é o tratamento dado à palavra proibida, que virou uma espécie de mercadoria, à venda nas vitrines das livrarias. “É a capitalização do insulto”, define, meio brincando, o historiador Leandro Karnal.
Depois que a semente vingou, a árvore dos títulos que contêm palavrões só faz crescer, forte e frondosa. Publicado em 2017, Seja F*da! (sem asterisco no original), do brasileiro Caio Carneiro — uma espécie de antítese dos conceitos pregados em A Sutil Arte… —, foi o quarto livro mais vendido no Brasil no ano passado, com 160 000 exemplares. A antropóloga Mirian Goldenberg, de sólida carreira acadêmica e autora de 26 livros com títulos do tipo censura livre, acaba de lançar Liberdade, Felicidade & F*da-se! (o “o”, mais criativamente, é substituído por uma bolinha de papel), sobre o público feminino que ultrapassou a casa dos 80 anos. “O f*da-se representa um botão imaginário que, ao ser acionado, proporciona uma velhice mais feliz, mais plena e mais livre, tanto de preconceitos quando de obrigações”, justifica ela.
O verbo utilizado em uma enorme variedade de situações que nada têm a ver com seu sentido original não é a única medalha a figurar no panteão dos títulos desbocados: Como Parar de Se Sentir uma M*rda, estocada nas mulheres “autodestrutivas” escrita pela life coach americana Andrea Owen, e Resolva a P*rra dos Seus Problemas, em que Laura Jane Williams ensina o leitor a focar as coisas “que realmente importam”, também estão vendendo muito bem, obrigado. “O título precisa saltar à vista, entre tantas obras do gênero. Além disso, o palavrão soa moderno e atrai um público que, em geral, torce o nariz para a autoajuda clássica”, diz Raïssa Castro, editora executiva da Best Seller.
A aceitação do palavrão que praticamente pula na frente das pessoas foi um processo gradual que só se popularizou nos últimos dois anos. Marcos da Veiga Pereira, sócio da Sextante e presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros, lembra que, em 2011, lançou Vai Dormir, P*rra, tradução de Go the F*ck to Sleep, livro infantil que tinha uma versão em audiobook narrada pelo ator Samuel L. Jackson e fazia tremendo sucesso nos Estados Unidos. A editora imprimiu 20 000 exemplares, contratou o humorista Helio de La Peña para fazer a dublagem — e o livro não vendeu nem 5 000 unidades. Agora, ao contrário, os leitores mostram se encantar com a nova embalagem da autoajuda em títulos profanos, impronunciáveis à mesa do jantar.
Especialistas apontam nessa atitude uma espécie de via de escape das pessoas reprimidas, como aquelas que morrem de rir ao ouvir um palavrão no teatro ou no cinema. Agora, se você se diverte com os títulos citados e alguém chega com explicações psicológicas, já sabe — ligue o botão e siga em frente, sem culpa nem remorso. Um asterisco de vez em quando é bom.
Publicado em VEJA de 21 de agosto de 2019, edição nº 2648