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Em 'Entardecer', o diretor de 'Filho de Saul'novamente recria o passado como uma experiência tão imprevisível quanto o presente

Por Isabela Boscov Atualizado em 4 jun 2024, 16h18 - Publicado em 3 Maio 2019, 07h00

Em 1913, a jovem Írisz Leiter (Juli Jakab) retorna a Budapeste pela primeira vez desde a infância. Quer pedir um posto na chapelaria que foi de seus pais, mortos em um incêndio, e reconectar-se com seu passado. Ou, melhor dizendo, quer recompô-lo: em sua ausência, a cidade transformou-se numa capital fervilhante; a loja nada mais tem de sua família que não o nome; e as pessoas que Írisz procura tratam-na com suspeição patente ou hostilidade mal disfarçada. É como se todos soubessem tudo de Írisz, e ela nada soubesse de ninguém. Ela apenas pressente que está no centro de algo, ou o catalisou. E, enquanto a câmera se cola à jovem com proximidade intrusiva, tão fechada na figura dela que mal sobra espaço para alguma referência espacial, Írisz anda, anda e anda. Vai de pensões decrépitas a parques, de mansões a becos, da loja a cocheiras, e esse algo que a segue cresce, avoluma-se e precipita-se. Em seu segundo filme, Entardecer (Naps­zállta, Hungria/França, 2018; já em cartaz no país), o diretor László Nemes novamente opta pela abordagem de sua estreia, o magistral Filho de Saul, de 2015: uma recriação tão impressionista e sensorial do passado que, para o espectador, ele se torna o tipo mais caótico de presente — aquele em que um personagem se desloca sem a mínima ideia do cenário que vai se abrir à sua frente nem do que o aguarda.

No entanto, se em Filho de Saul a ambientação era conhecida — o campo de extermínio de Ausch­witz-Birkenau —, em Entardecer ela pede um conhecimento da história que talvez não seja imediatamente acessível à plateia, sobre a Europa tensionada por forças concorrentes (entre as quais virulentas correntes nacionalistas) e o clima saturado de insatisfação que, em 1914, afinal culminou na I Guerra Mundial. A intenção de formular um paralelo com a Europa atual é clara, e Írisz é, para o espectador, uma procuradora, já que sua busca a leva a percorrer os aspectos mais salientes desse tumulto: a depravação e o descaso da aristocracia e da alta burguesia; o encastelamento das monarquias (na loja, ela atende os estopins da guerra, o herdeiro do Império Austro-Húngaro e sua esposa); a radicalização das facções revolucionárias (o irmão que ela nem sabia ter é líder de uma delas).

Saul era um massacre compacto das emoções da plateia, mas aqui o trabalho de Nemes não é inteiramente bem-sucedido. Longo (142 minutos) e exaustivo na sua movimentação incessante (ainda que virtuosística), Entardecer mais entorpece do que submerge a plateia. No desfecho, entretanto, o filme recobra sua força e, com ela, o poder do argumento de Nemes de que a nostalgia é o recurso perigoso com que uma geração busca não ter de ponderar as consequências dos seus atos: visto de perto, o passado não é dourado e certamente não é melhor que o presente. É, como este, a beira de um abismo sempre possível.

Publicado em VEJA de 8 de maio de 2019, edição nº 2633

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