‘Os progressistas viram a cara para os judeus’, diz ativista David Baddiel
No Brasil para evento do Museu Judaico, o humorista convertido em crítico da esquerda afirma que seus semelhantes são esquecidos nas pautas identitárias
Apresentador, comediante e escritor, o britânico David Baddiel, de 59 anos, talvez seja mais conhecido no Brasil por suas aparições em breves pontas de atuação em séries como Skins, ou em suas dezenas de especiais cômicos. Na sua terra natal, porém, ele se tornou porta-voz da luta contra o antissemitismo. Um dos convidados do Festival Literário do Museu Judaico — que ocorre em São Paulo até domingo, 3 de novembro —, ele acaba de lançar no Brasil o livro Judeus Não Contam — no qual apresenta as ideias que viraram sua carreira de cabeça para baixo.
Nele, o comediante argumenta que, em meio à escalada de pautas identitárias na esquerda ocidental, a preocupação em torno do antissemitismo e da cultura judaica é nula, seja por estereótipos racistas como “judeus controlam Hollywood”, seja pela política externa conflituosa de Israel com os palestinos. O livro foi publicado pela primeira vez em 2021, deu mote a um documentário no ano seguinte — com participação de David Schwimmer, Miriam Margolyes, Neil Gaiman e outros artistas de origem judia —, e agora chega à língua portuguesa. Em entrevista a VEJA, Baddiel defende sua tese explosiva sobre a esquerda, fala sobre a situação política de Israel e a questão do antissemitismo. Confira:
Quando você tomou consciência do antissemitismo como objeto de estudo? Sempre fui muito ciente de minha identidade judia e do antissemitismo. Minha mãe nasceu na Alemanha nazista e a maior parte desse ramo familiar foi morto — eles conseguiram escapar muito tarde. O ponto chave que me fez escrever Judeus Não Contam, entretanto, foi perceber que, há uns 10 ou 15 anos, o foco da política progressista mudou para questões de identidade, racismo, discriminação, inclusão e representatividade, mas nenhuma das pautas contemplava os judeus. Fui notando mais e mais esta forma indireta de antissemitismo, que me interessou por ser mais complexa e, de certo modo, mais importante — o ódio acompanha os judeus há séculos, mas esse é um novo fenômeno.
O senhor argumenta que outras minorias não estendem sua compaixão à comunidade judaica, perpetuando a marginalização. O que acredita que motive isso? Um grande problema é que judeus ainda são associados às esferas de poder, enquanto outras minorias remetem à vulnerabilidade e à carência econômica. O estereótipo de que judeus dominam o mundo e são mestres do lobbying direciona agressão, inveja e raiva à comunidade, além de se tornar uma desculpa para antissemitas famosos como Kanye West. É triste, na verdade, pois a colaboração já foi crucial no passado. Nos anos 1960, a aliança judaico-negra foi uma mobilização importante para a luta por Direitos Civis, e Martin Luther King sempre prestou solidariedade ao povo judaico. Grande parte da culpa é das redes sociais, que criam tribos e intensificam a noção rígida de pertencimento — as pessoas online querem provar sua identidade, e fazem isso atacando as outras.
Sua fama nasceu dos especiais de comédia e trabalhos como apresentador na TV britânica, mas o humor parece ter sido escanteado para o segundo plano de sua carreira. Hoje, você se vê como comediante ou ativista? Minha origem é a comédia. Um dos meus grandes parceiros, Frank Skinner, com o qual apresentei diversos programas, começou a me caçoar há uns 5 anos dizendo que eu havia me tornado ativista e abandonado o humor — o que eu odiava. O ativismo sempre me pareceu algo seco e sério, mas suponho que é o que eu faço. Acredito que o que tenha me alçado a esse status é que ninguém havia dissecado a era atual do antissemitismo antes disso, ninguém questionou o porquê da mentalidade progressista virar a cara para os judeus. Quando o livro saiu, muitos membros do Partido Trabalhista britânico ficaram com raiva, pois não conseguiam entender como podiam ser de esquerda e também racistas e antissemitas. Esse trabalho, então, acaba sendo ativismo, mas para mim é uma desconstrução psicológica dessas pessoas.
Dada sua crítica às políticas identitárias de esquerda, você acredita que a direita é uma vertente mais acolhedora aos judeus de hoje? No momento, diria que a centro-direita é muito receptiva aos judeus, mas o problema é que tal acolhimento é político. No Reino Unido — assim como nos Estados Unidos e em outros lugares —, esse setor está usando o povo judeu como um bastão para agredir a esquerda. Existe essa dinâmica em que, se a esquerda é vista como culpada pelo antissemitismo difundido atualmente, a direita assume a causa dos judeus. É algo que me causa suspeição. Usar judeus como peões nunca nos ajuda. É complicado: meu lar natural já foi a esquerda, mas agora me considero completamente desterritorializado da política — sou um judeu errante, alienado da esquerda por causa desse livro, mas sem qualquer chance de me considerar de direita, já que sua ala extrema sempre será antissemita.
Em meio ao conflito entre Israel e os palestinos em Gaza, líderes mundiais e dezenas de figuras públicas passaram a levantar discussões sobre o antissemitismo. O senhor acredita que a preocupação emergente é genuína ou instrumentalizada? Acredito que ambos, o que é bem estranho. Me fascina como essa minoria se tornou tão central à história global — no século XX, nos tempos bíblicos ou agora. Não sei o motivo que conecta a minoria judaica às questões históricas de hoje — sou completamente ateu e materialista. O que observo é que, sim, existe a instrumentalização do antissemitismo como arma, mas isso não significa que o ódio voltado a essa comunidade não exista.
Além daqueles que já se pronunciaram, muitas celebridades — judias ou não — são cobradas pelos fãs a tomarem um partido no conflito em Gaza. Como se sente com essa demanda? Um dos meus pilares argumentativos sempre foi que é racista cobrar que judeus nativos do Reino Unido, do Brasil ou de onde quer que seja definam sua identidade judaica a partir de Israel. Nenhuma outra minoria étnica é obrigada a se pronunciar por questões geopolíticas de seu povo — ninguém responsabilizaria um muçulmano brasileiro pelas atitudes da Arábia Saudita ou do Irã, por exemplo. Eu, pessoalmente, me sinto emocionalmente desligado de Israel, mas admito que os eventos recentes têm me sobrecarregado. As atrocidades de 7 de outubro se assemelham a um pogrom, e por isso me senti compelido a rechaçá-las publicamente. Quanto ao resto do mundo, já acho que a janela curta de simpatia se fechou e a condenação universal de Israel — que é o comum — voltou a ser a regra. Por outro lado, também sou cobrado por israelenses, que exigem que eu sinta uma conexão com a nação. Mas minha compaixão é pelos judeus, não por um país a 4 000 milhas de distância.
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