Relâmpago: Digital Completo a partir R$ 5,99

Pérola negra

Jinga de Angola, rainha africana que desafiou Portugal no século XVII e manteve um ‘harém de homens’, enfim ganha biografia condizente com sua importância

Por Alberto Mussa
Atualizado em 4 jun 2024, 15h41 - Publicado em 8 mar 2019, 07h00
Jinga de Angola
JINGA DE ANGOLA: A RAINHA GUERREIRA DA ÁFRICA, de Linda M. Heywood (tradução de Pedro Maia Soares; Todavia; 320 páginas; 89,90 reais e 39,90 reais na versão digital) (//Divulgação)

Ainda que mulheres raramente tenham chegado a posições dominantes no governo de Estados até o século XIX, contam-se às centenas os livros escritos sobre as poucas figuras extraordinárias que romperam essa barreira, como Elizabeth I (1533-1603), da Inglaterra, e Catarina, a Grande (1729-1796), da Rússia. Assim, nada justifica o menor interesse suscitado por outra governante de incontestável importância histórica: a rainha Jinga, de Angola (1582-1663) — que, à frente de exércitos poderosos, resistiu à colonização portuguesa no continente africano, fundou o próprio reino, pegou em armas, teve um “harém de homens” e se correspondeu até mesmo com o papa. Não menos triste é que a pouca atenção obtida por Jinga tenha inspirado apenas livros empenhados em degradá-la como pessoa, em vez de engrandecê-la.

É com tais considerações que a historiadora americana Linda M. Heywood abre sua biografia Jinga de Angola: a Rainha Guerreira da África. Na edição enriquecida com imagens, mapas e um posfácio de Luiz Felipe de Alencastro, a historiadora não se limitou a resumir os textos mais conhecidos sobre Jinga, de autoria de três Antônios: Gaeta, Cavazzi e Cadornega. Em vez disso, ela mergulhou em arquivos e consultou diversos documentos valiosos escritos em línguas como latim, português e italiano.

O livro começa situando o leitor nos contextos social e político da África central entre os séculos XVI e XVII. Quando os portugueses invadem a ilha de Luanda, em 1575, e iniciam o processo de conquista, havia na região Estados monárquicos bem estabelecidos, entre os quais os reinos do Congo e Ndongo. Os reis do Congo já eram cristãos desde os fins do século XV. A estratégia portuguesa, além da imposição militar, previa a cooptação cultural, cujo principal fundamento era ampliar a presença do cristianismo entre os povos locais.

É quando Jinga entra em cena. Seu irmão, Ngola Mbande, ainda era o rei dos ambundos do Ndongo no momento em que a envia a Luanda, como embaixatriz. A cena é célebre: o governador português a recebe sentado em uma cadeira imponente; e põe um tapete no chão, para que ela se sente num nível mais baixo. Jinga, então, manda uma escrava postar-se de quatro, e se senta sobre as costas dela.

O impacto foi enorme: Jinga, que também dominava a arte da oratória, sai do encontro sem reconhecer a soberania do rei português — coisa, aliás, que jamais viria a fazer. O batismo que aceitou dias depois (recebendo um nome cristão, Anna de Sousa) foi feito sob suas condições e não passou, para ela, de um rito de aliança entre duas coroas independentes.

Continua após a publicidade

E a história continua: Jinga vê seu filho assassinado; mata o sobrinho; talvez o próprio irmão; e se torna rainha. Enfrenta os colonizadores em batalhas tremendas, espetaculares, sempre postada na linha de frente, como general de seus exércitos. Há muita traição, muita matança. Jinga não aceita perder o que julga ser seu por direito: o reino do Ndongo. E, depois de sofrer derrotas contundentes e outro rei ser posto em seu lugar, decide se tornar uma guerreira jaga (ou imbangala, como prefere Heywood).

Os jagas foram uma etnia seminômade de caráter iniciático — ou seja, não definida por descendência ou lugar de nascimento, mas por um código de ética e ritos de passagem. As mulheres eram proibidas de ter filhos: as crianças jagas eram capturadas entre outros povos. Eles praticavam o infanticídio se filhos naturais nascessem nos quilombos, como se chamavam seus acampamentos de guerra. E também se devotavam a uma espécie de canibalismo ritual, vinculado às celebrações guerreiras.

Jinga se casa com o jaga Kassanje, o mais poderoso entre todos. Em pouco tempo, depois de sua iniciação, e já separada, passa a comandar exércitos imensos, mantendo um harém com dezenas ou centenas de maridos — todos obrigados a se vestir de mulher enquanto ela, Jinga, se vestia como homem. E é como jaga, assumindo todos os elementos culturais correspondentes, que Jinga se torna rainha de um reino novo, o de Matamba, depois de impor outras derrotas colossais aos portugueses.

A autora, afrodescendente, tinha uma agenda ao escrever a biografia de Jinga: destacar as questões de resistência, gênero e espiritualidade. Obteve imenso sucesso nos dois primeiros itens. Mas falha no terceiro. Preocupada em apagar a má imagem da rainha, ela exalta a conversão final de Jinga à religião de Roma, definida como “renascimento espiritual” e “revolução cristã”. No mesmo passo, reprova a poligamia, o infanticídio, o canibalismo, os sacrifícios humanos de jagas e ambundos — embora não faça nenhum reparo, o mínimo que seja, ao fato de Jinga ter vendido ou permitido a venda de dezenas de milhares de escravos, mesmo sabendo que a escravidão cristã dos europeus era infinitamente mais cruel e abominável que a africana — na qual o escravo era quase membro da família.

Continua após a publicidade

Linda Heywood não recrimina a rainha por ter mandado espancar e assassinar xingulas, os sacerdotes da religião tradicional de sua sociedade, que insistiam em praticar antigos cultos então proibidos. E a historiadora americana considera muito natural, e até justo, que Jinga, para pagar o resgate de uma única irmã, tenha enviado 130 escravos a Pernambuco. Da perspectiva brasileira, aliás, descendemos desses 130, que depois foram vítimas de estupros e torturas — e não da linhagem real.

O livro, apesar de tais falhas, é excepcional e imprescindível, por preencher uma lacuna sobre personagem essencial e dar a devida relevância aos feitos de Jinga. Mas a interpretação da história, nesses casos em que as diferenças culturais são extremas, exige sempre um olhar antropológico, um exercício de mediação entre verdades, e nisso a autora deixa a desejar. O leitor terá, ao menos, a chance de fazer esse exercício por si mesmo.

Publicado em VEJA de 13 de março de 2019, edição nº 2625

Continua após a publicidade
carta
Envie sua mensagem para a seção de cartas de VEJA
Continua após a publicidade

Qual a sua opinião sobre o tema desta reportagem? Se deseja ter seu comentário publicado na edição semanal de VEJA, escreva para veja@abril.com.br

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*
Apenas 5,99/mês
DIA DAS MÃES

Revista em Casa + Digital Completo

Receba 4 revistas de Veja no mês, além de todos os benefícios do plano Digital Completo (cada revista sai por menos de R$ 9)
A partir de 35,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a R$ 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.