Pesquisadora britânica restaura a imagem de Jane Bolena, retratada até hoje como traidora
O livro revela a atuação e a complexidade de uma mulher que ousou jogar o jogo da corte e que, até agora, foi definida por aqueles que a venceram
A história é frequentemente implacável com as mulheres que operaram nos limites do poder masculino. Entre as figuras mais prejudicadas por esse julgamento está Jane Bolena (c. 1505-1542), a viscondessa Rochford. Como dama de companhia de cinco das seis rainhas de Henrique VIII, ela ascendeu ao centro do poder junto de sua família, os Bolena. Seu legado, no entanto, foi definido pela acusação de ter testemunhado contra o próprio marido, George Bolena, e sua cunhada, a rainha Ana Bolena, enviando-os à execução. Para historiadores de períodos posteriores, suas ações a transformaram em uma figura “monstruosa” — uma caricatura de perversidade que ignorava a realidade complexa de uma cidadã determinada a sobreviver.
Foi para contestar essa narrativa que a romancista e pesquisadora britânica Philippa Gregory visitou a dinastia Tudor em À Sombra dos Bolena, lançado recentemente no Brasil pela HarperCollins. O romance histórico se baseia em uma reavaliação da imagem de Jane como megera ressentida. A própria autora admite não ter sido justa com a personagem em trabalhos passados. Agora, busca uma reparação, apresentando “um retrato complexo de uma mulher que ousou sobreviver a qualquer custo”.
Gregory direciona a atenção para a perspicácia e a inteligência de Jane. Filha do diplomata Henry Parker, lorde Morley, ela tinha um domínio de línguas superior ao da maioria na corte — além do inglês, falava francês, espanhol, italiano e lia latim e grego. Era uma cortesã capacitada, forçada a desempenhar vários papéis em um ambiente onde, nas palavras da autora, “o menor sussurro pode selar o destino das rainhas”. Sua inteligência era um atributo valorizado por figuras poderosas, incluindo o rei.
O papel de Jane como informante é central para a nova interpretação. Como viúva de um traidor, ela deveria ter caído no esquecimento. Em vez disso, permaneceu na corte, foi promovida e ainda recebeu a propriedade de Blickling Hall. Gregory explica que foi Thomas Cromwell, o principal secretário do rei, que a trouxe de volta para usá-la como espiã. Sua função era relatar o que via e ouvia na engrenagem do castelo, servindo como os “olhos e ouvidos” de seu benfeitor, que buscava informações antes que chegassem ao rei. Cromwell utiliza Jane como “referencial da verdade, não como fonte de fofocas”. Esta rede de espionagem era um elemento-chave para a navegação em uma corte cada vez mais inesperada.
A instabilidade era alimentada pela tirania do rei Henrique VIII, cuja vaidade tornou a corte um lugar perigoso. Segundo Gregory, todos ao seu redor competiam para sustentar a ilusão de que Henrique era “o melhor da sala, o mais bonito, o mais jovem, o mais corajoso, o mais cavalheiresco”. Jane percebeu como a adulação se tornara uma questão de vida ou morte. Mesmo assim, a cortesã viu sua história ser virada do avesso com o propósito político de construir a história da dinastia Tudor, que sustentaria seu direito de governar. Era o começo do restabelecimento da reputação de Henrique VIII, diz Gregory. “O preço disso foi transformar Jane em vilã”, sustenta a autora.
A tragédia de Jane Bolena, silenciada e difamada, ecoa o perigo de viver sob a tirania. Gregory enfatiza que “tiranos corrompem boas instituições e as viram contra o próprio povo”. Sua queda final, com um colapso mental real ou fingido, não a salvou da execução sumária. A autora conclui com um aviso que permeia o romance: “A história nos diz que precisamos achar a coragem de defender os outros e as instituições e as tradições do nosso país antes que o perigo seja imediato e pessoal. Quando o tirano enfim se volta contra nós, já é tarde demais. Não devemos ser como Jane Bolena, reconhecendo o perigo quando já não há mais tempo de dizer ‘não’ — caso contrário, seremos silenciados como ela, e nossa história também será escrita pelo tirano”.
Ao resgatar Jane Bolena das sombras, Gregory lembra que a verdade dos fatos é quase sempre uma narrativa imposta pelos poderosos. O livro convida o leitor a desvendar a aventura que pensava conhecer, revelando a atuação e a complexidade de uma mulher que ousou jogar o jogo da corte e que, até agora, foi definida por aqueles que a venceram. Game of Thrones é fichinha.
Publicado em VEJA de 14 de novembro de 2025, edição nº 2970
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