Pode jogar, filho: os games infantis aliviam a falta de interação social
Antes vista com desconfiança pelos pais, a brincadeira faz sucesso no isolamento na pandemia
A popularização dos smartphones e dispositivos eletrônicos provocou nos últimos anos uma guerra velada entre pais e filhos. De um lado, os adultos argumentavam que o excesso da tecnologia poderia atrapalhar o desenvolvimento saudável das crianças. De outro, os jovens não queriam perder a nova onda. A bandeira branca chegou com a pandemia: escola, terapia e encontros com amigos passaram a depender, inevitavelmente, da conexão virtual. Nesse cenário, a brincadeira digital também cresceu. De acordo com a consultoria Newzoo, a receita dos jogos virtuais deverá alcançar em 2020 o recorde de 159 bilhões de dólares. No setor mobile, o crescimento será de 13,3%, enquanto consoles terão uma alta de 6,8%. A surpresa é que boa parte dessa subida não se deve aos jogos para adolescentes, como seria de imaginar. Poucos games fizeram tanto sucesso na quarentena quanto o PK XD, da PlayKids, que é destinado para crianças de 8 a 13 anos. Durante a pandemia, o número de jogadores disparou 100%, atingindo impressionantes 25 milhões de usuários ativos por mês.
O resultado se deve a uma combinação de fatores, impulsionados pela natural necessidade de buscar formas de aproveitar o tempo durante a quarentena. Priscila Cavallieiro de Oliveira, mãe da Luiza, de 6 anos, conta que ainda existe uma rotina de tarefas em casa e a limitação de horários para brincar no celular. Com as crianças trancadas dentro de um apartamento, contudo, desconectar-se é um desafio. “Minha filha combina de se encontrar com os amigos no jogo, o que a ajuda a atravessar este momento”, disse Priscila. Entre outras tarefas impostas aos jogadores, o game ensina as crianças a entender o uso do dinheiro, como o ganho de moedas para fazer compras ou trocar mercadorias. “Minha filha está aprendendo desde cedo que precisa economizar”, diz Priscila. “Também há momentos em que ela tem de lidar com o sentimento de frustração.”
O jogo é território aparentemente seguro. De acordo com Breno Masi, diretor de produtos da PlayKids — a empresa integra o grupo Movile, dono do iFood —, três motivos principais explicam a expressiva adesão ao PK XD. “A criança não usa o próprio nome, não há cadastro com foto e o chat ocorre com frases prontas, desenvolvidas por uma equipe de pedagogos”, diz. Além disso, Masi afirma que as crianças podem se expressar de maneira livre e têm a opção de escolher qualquer estilo de roupa, cabelo e a forma como preferem brincar. Por fim, o PK XD é uma espécie de rede social. Com a limitação de contato entre amigos da mesma idade, o ambiente virtual se tornou a melhor forma de manter algum tipo de interação — isso, aliás, também explica a explosão do uso de redes para adultos, como Instagram e Twitter, durante a pandemia.
Para o psicólogo Cristiano Nabuco, coordenador do grupo de dependências tecnológicas do Instituto de Psiquiatria da USP, a pandemia obrigou a sociedade a rever conceitos, como o número exato de horas dedicadas às telas. “O problema não é a tecnologia, mas o uso que se faz dela”, diz. “Se for para a conexão entre pessoas, será benéfica.” Segundo um estudo recente feito pela Kantar Ibope Media, 56% dos entrevistados afirmaram que a crise do coronavírus ajudou a adotar melhor a tecnologia no dia a dia. Com segurança e consciência, a rotina de confinamento pode ser mais divertida.
Publicado em VEJA de 2 de setembro de 2020, edição nº 2702