Moda é sinônimo de luxo, exclusividade e glamour. Desfiles, modelos, estilistas, roupas lindas e ambientes sofisticados vêm logo à mente quando a palavra é evocada. Mas, visto pelo prisma que os holofotes não alcançam, esse mundo pode ser bastante cruel. Da longa e frágil cadeia produtiva ao assédio moral, racismo, gordofobia, trabalho infantil ou análogo à escravidão e informalidade, a lista de problemas nesse universo é extensa. De forma caricata, esse lado B da moda está retratado no emblemático O Diabo Veste Prada (2006). Embora classificado como comédia, o filme contém passagens explícitas de assédio moral protagonizadas pela poderosa editora de moda Miranda Priestly, a personagem de Meryl Streep. Quem não se lembra da icônica cena em que Miranda joga repetidamente bolsa e casaco em Andy Sachs, a assistente recém-contratada vivida por Anne Hathaway? Ou de frases do tipo: “Detalhes de sua incompetência não me interessam”, dirigida à sua ajudante Emily Charlton (Emily Blunt), ou ainda “Pedi clara, atlética e alegre, e ela me mandou parda, cansada e gorda”, referindo-se a uma modelo?
Quem vive a realidade do mercado, porém, acha que o filme é fábula de criança perto do dia a dia verdadeiro. “O meio da moda no Brasil é pior”, diz uma ex-funcionária de marketing de um grande grupo de moda brasileiro. “Quando o atual CEO assumiu, ordenou a demissão de todas as funcionárias ‘velhas, gordas e feias’, nas palavras dele”, conta. Essa é apenas uma das várias histórias de abusos cometidos nas confecções, lojas, agências de modelos e backstages de desfiles. “Já vi modelos passarem horas sem comer à espera da boa vontade do diretor do desfile para começar os testes, estilista aos berros só porque uma caneta caiu, chefe tirando comida da boca da assistente, chamando-a de gorda”, relata outra profissional da área. São recorrentes também crimes de racismo e manifestações racistas como a feita pela Prada em 2018. Naquele ano, a grife foi acusada de blackface quando decorou a fachada de sua loja no Soho, em Nova York, com bonecos pretos de lábios vermelhos e grossos. Sem contar o uso de trabalho infantil ou análogo à escravidão, prática abjeta da qual muitos integrantes do segmento se valeram e se valem até hoje.
Pressionados por consumidores mais exigentes em relação à origem dos produtos, o setor decidiu fazer um mea-culpa. O segmento acaba de lançar o movimento ModaComVerso, liderado pela Associação Brasileira do Varejo Têxtil (ABVTEX). A entidade se uniu a grandes marcas como Arezzo, C&A, Dafiti, Renner, Reserva, Riachuelo com o propósito de construir o que chamam de moda socialmente responsável. Nas palavras dos organizadores, o objetivo é estimular a criação de uma cadeia produtiva ética, humana e transparente. “É importante poder nos comunicar para fora do círculo das empresas e jogar luz no setor tanto no seu lado bom quanto no ruim. Assim, podemos conscientizar e resolver”, diz Jayme Nigri, COO da Reserva, uma das marcas do ModaComVerso e considerada um dos poucos bons exemplos entre as grandes da moda — está entre as trinta melhores na Pesquisa Empresas Humanizadas 2020, ligada ao Grupo de Gestão de Mudanças da Universidade de São Paulo (EESC-USP).
Desde 2010, a ABVTEX realiza auditorias nas empresas para monitorar os processos da cadeia de fornecimento, do plantio de algodão à confecção, inclusive os realizados por terceiros. Segundo a associação, já foram realizadas mais de 43 000 auditorias, com 3 500 fornecedores aprovados, espalhados em dezenove estados e 615 municípios, beneficiando cerca de 350 000 trabalhadores. “É uma ação efetiva para combater o trabalho análogo ao escravo e infantil e os assédios. Entrevistamos os trabalhadores para identificar situações de abuso, violência e discriminação”, explica Edmundo Lima, diretor executivo da ABVTEX. Se algum problema for comprovado, a empresa tem três meses para resolvê-lo. Caso contrário, será suspensa e excluída da cadeia produtiva por um período, o que pode significar a morte do negócio. Que bom. A última tendência, pelo visto, é ter consciência.
Publicado em VEJA de 22 de setembro de 2021, edição nº 2756