Após participar do Festival de Aix-en-Provence, na França, em 2017, o cantor lírico polonês Jakub Józef Orlinski recebeu uma ligação dos organizadores lhe pedindo para quebrar um galho: eles precisavam às pressas de um substituto para o grupo que havia cancelado a apresentação em uma rádio local. Na época, aos 26 anos e em início de carreira, ele topou. Como seria para a rádio, Orlinski foi com tênis surrado, bermuda e uma camisa que já vira dias melhores. Seu parceiro tocou piano de chinelão. Apenas quando chegaram lá eles descobriram que a performance seria transmitida pela internet. Mas aí já era tarde. A discrepância entre o visual jovem e despojado do cantor e a composição barroca que ele interpretou com sua voz angelical de contratenor — a ária Vedrò Con Mio Diletto, de Vivaldi — viralizou na internet, com 8,5 milhões de visualizações. Esse comportamento singular em um universo tão tradicional quanto o da música erudita virou marca registrada daquele que é um dos cantores líricos mais festejados pela crítica da atualidade. De quebra, o perfil vem ajudando a rejuvenescer o público dos concertos. Orlinski é o que a ópera oferece hoje mais próximo de um pop star.
Nascido em 1990, em Varsóvia, o artista faz parte da primeira geração polonesa após a queda do Muro de Berlim. O interesse em cantar como contratenor — modalidade de voz lírica aguda, mas apenas alcançada por homens — veio na adolescência. Para se destacar entre os meninos de um coral, ele praticava cantos renascentistas, compostos para vozes mais altas e que nenhum adolescente queria cantar. Ao mesmo tempo, gostava de dançar e de praticar esportes radicais. Daí viu no break, estilo de dança altamente físico, a união perfeita de seus interesses. Seu mais novo álbum, Vivaldi: Stabat Mater (Warner Classics), é exemplo disso. O trabalho chega acompanhado de um curta-metragem musical que bebe dos filmes de terror adolescente. “Nas minhas redes sociais, quero mostrar para os mais jovens que a ópera é muito legal”, disse o artista a VEJA. Construir uma base de fãs jovens em um ambiente erudito é incomum — mas o falante e bonitão Orlinski, hoje aos 31 anos, consegue operar o milagre (leia entrevista). Em fevereiro, fez um recital no Wigmore Hall, em Londres, para um público juvenil. Ao final, uma mocinha pediu autógrafo em um caderno cuja capa estampava: “Desculpe, eu não estava te ouvindo. Estava pensando em Jakub Józef Orlinski”.
No Brasil, Orlinski ainda é conhecido só nos círculos de entendidos em ópera. Mas já foi tema até de artigo acadêmico: o mestre em comunicação Daniel Magalhães de Andrade Lima, da Universidade Federal de Pernambuco, analisou a técnica dos contratenores à luz das discussões sobre gênero. “Há um fascínio por cantores com aparência masculina e voz feminina, o que traz curiosidade sobre a sexualidade deles”, diz Lima. A propósito: enquanto outros contratenores são abertamente gays, Orlinski faz mistério sobre o tema.
Os contratenores surgiram no século XVII, quando a presença de cantoras em eventos religiosos foi proibida pela Contrarreforma, fazendo com que o canto alto do coral coubesse a meninos que dominavam a técnica do falsete. Nos séculos seguintes, eles foram substituídos pelos castrati, cantores castrados na infância para evitar alterações hormonais, deixando a voz aguda intacta. Com o fim da prática cruel, os contratenores ressurgiram. A ascensão de Orlinski prova que cantar fininho nunca foi tão pop.
“Não sou o Justin Timberlake”
Sucesso de crítica e nas redes, o cantor polonês Jakub Józef Orlinski conta como construiu uma carreira tão singular no tradicional mundo da ópera.
Como duas coisas tão distintas quanto o break e a ópera entraram na sua vida? Sempre fui uma criança ativa. Nunca fiz apenas uma coisa. Sempre gostei de cantar e de dançar. Na infância, fiz parte de um coral amador, mas também tocava piano, andava de skate, jogava capoeira — até que encontrei o break. Foi fascinante para mim, porque conectava a dança com os esportes radicais, a criatividade com a liberdade de expressão, a força física com a arte.
Com milhares de seguidores nas redes, você se vê como um popstar da ópera? Não sou um Justin Timberlake. Provavelmente, apenas na França alguém me reconheceria na rua. No resto do mundo, ninguém sabe quem eu sou. Gosto de compartilhar as minhas interpretações e quero atingir a maior quantidade possível de pessoas com minha arte.
A voz aguda leva muita gente a achar que contratenores são gays — e diversos admitem sê-lo. No seu caso, como lida com a sexualidade? Não tenho nenhum problema com isso. Se as pessoas quiserem pensar que eu sou gay ou hétero, isso é problema delas. Meu objetivo não é dizer às pessoas quem eu sou no sentido sexual. Então, não, realmente eu não me importo com isso.
Nas redes sociais, os fãs frequentemente associam sua voz a algo angelical, mas também há muitos haters. O que pensa disso? Há muito amor e muito ódio na internet. Estou aprendendo a lidar com essas coisas. Você tem de aprender o que deve levar a sério e o que não deve ao lidar com a fama na internet. Nem sempre há comentários ótimos. Também há algum ódio. É preciso encarar essas coisas de modo saudável.
A Polônia, seu país, está abrigando milhares de refugiados da Ucrânia. Como vê o conflito? Ninguém realmente acreditava nessa guerra. Tenho muitos amigos ucranianos. É difícil. Como cantor, tenho esperança no papel transformador das artes para construir novas pontes entre as pessoas.
Publicado em VEJA de 30 de março de 2022, edição nº 2782
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