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Romance ‘A Porta’, de Magda Szabó, é preciosa lição de humanismo

A húngara usa a relação entre uma escritora e sua enigmática doméstica para expor a fragilidade daquilo que nos faz humanos

Por Diego Braga Norte Atualizado em 4 jun 2024, 13h20 - Publicado em 23 jul 2021, 06h00

Logo na terceira página de A Porta, da escritora húngara Magda Szabó (1917-2007), a narradora confessa ser a responsável pela morte de certa Emerenc. De tão introdutória, a confissão não é spoiler, mas uma isca. E bastam essas três páginas — envoltas em clima de pesadelo — para o romance fisgar a atenção dos leitores. O artifício empregado pela autora é inteligente e, nesse caso, eficaz. Ela revela como será o fim da história, mas deixa todo o resto no ar. Quem é Emerenc? Houve um assassinato? Como? Por quê? É um xeque-mate: não há o que fazer a não ser prosseguir a leitura.

Livro – A Porta

Muitos possivelmente já conheceram o livro de Szabó por meio de sua versão cinematográfica, Atrás da Porta, de 2012, com a sempre competente Helen Mirren interpretando a enigmática Emerenc. Mas só a leitura da obra revela todas as nuances da improvável, bela e complexa amizade entre duas mulheres em quase tudo diferentes. Pintada com generosas tintas autobiográficas, a narradora Magda é uma jovem e culta escritora de classe média que vive com seu marido (também escritor) em um apartamento na Budapeste comunista do fim dos anos 50. Para conseguir escrever, ela contrata uma vizinha para lhe ajudar nos trabalhos domésticos.

A PORTA, de Magda Szabó (tradução de Edith Elek; Intrínseca; 256 páginas; 44,90 reais e 29,90 reais em e-book) -
A PORTA, de Magda Szabó (tradução de Edith Elek; Intrínseca; 256 páginas; 44,90 reais e 29,90 reais em e-book) – (./.)

Já idosa, Emerenc é uma trabalhadora de origem humilde, incansável e muito eficiente. Cuida não só do apê de Magda, mas também do condomínio onde moram. Não gosta de livros, detesta a barulhenta máquina de escrever de Magda e despreza todo o conhecimento formal. Além do anti-intelectualismo (aliás, bem atual), há segredos escondidos atrás de sua porta e de seu semblante, sempre fechados. O temperamento imprevisível da doméstica completa o mistério de sua personalidade, que alterna momentos de rispidez com rompantes de ternura e altruísmo.

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Mas, como a narradora depois percebe, “o que Emerenc odiava era o poder, não importa em que mãos estivesse, se aparecesse algum homem capaz de resolver todos os problemas dos cinco continentes, Emerenc ficaria contra ele também, simplesmente porque seria o vencedor. Para ela, todos tinham um denominador comum, deus, o escriturário, o militante do partido, o rei, o executor, o secretário-geral da ONU, e, se acontecia de ela manifestar sua solidariedade a alguém em particular, sua compaixão era universal, não apenas a quem a merecia, mas a todos, mesmo aos criminosos”. Sim, há algo de subversivo nessa postura, que diz muito sobre a autora. Szabó viveu às turras com o Partido Comunista Húngaro e teve seus livros proibidos entre 1949 e 1956.

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Na medida em que a estranha amizade vai se forjando, o passado de Emerenc emerge. A narradora descobre como sua funcionária sobreviveu à II Guerra e outros segredos, inclusive os que levariam à morte da amiga. No conflito, ela ajudou vítimas (uma família de judeus), um aliado (um combatente russo) e até um inimigo (um soldado alemão). Um humanismo latente se sobrepõe ao niilismo anarquista de Emerenc. Desprovido de segundas intenções, esse sentimento é a base não só da amizade entre as duas, mas de todo o tecido social. É também frágil e se esvai facilmente em tempos de crise, seja na relação entre duas pessoas, seja num regime totalitário. Com sua escrita magnética, Szabó mostra que aquilo que nos faz humanos pode e deve ser preservado.

Publicado em VEJA de 28 de julho de 2021, edição nº 2748

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