Quando a Revista de Antropofagia foi lançada, em maio de 1928, ela trazia em sua capa o Manifesto Antropófago, escrito por Oswald de Andrade. Conhecido por ser o enfant terrible do modernismo, Oswald era galanteador, piadista e gastava sua fortuna familiar com festas, viagens, mulheres e projetos culturais. A (má) fama de playboy, mulherengo e festeiro do autor talvez tenha influenciado na apreciação crítica do texto. Nada mais errôneo que as primeiras impressões – as quais acusaram a antropofagia de ser infantil e primitiva. Ao contrário, é uma proposta estética original e ousada. Mais que um projeto teórico, é um conceito prático, uma ferramenta cultural ao alcance de qualquer um – e atualíssima.
O texto do manifesto é curto — não tem mais que três páginas —, telegráfico e recheado de referências. Oswald leu Freud, Breton, Montaigne, Rousseau, dentre outros, para embasar sua defesa da renovação cultural brasileira. Para os pesquisadores, a grande sacada do autor foi dar uma guinada de 180 graus na interpretação em voga na época. Havia (e ainda há) um entendimento de que a cultura ocidental de matriz europeia é dominante em relação às culturas ameríndias e afro-brasileiras, menosprezadas e retratadas como “primitivas”, “ingênuas” ou outros adjetivos depreciativos. Sendo “superior”, essa cultura europeia teria se imposto às demais de forma natural.
Para Oswald, a cultura europeia não se sobrepõe de maneira pacífica, mas é drasticamente transformada na medida que tenta se enraizar no Brasil. Desse embate, sobressai como arma nacional a antropofagia que devora o material que vem de fora para transformá-lo. Perspicaz, a interpretação oswaldiana reconhece alterações nos dois polos do processo — algo que depois foi comprovado por uma série de estudos antropológicos e etnográficos, como os feitos por Claude Lévi-Strauss, por exemplo. “Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem”, diz um trecho do Manifesto.
“Oswald de Andrade apostou na antropofagia na baixa e agora ela está em alta. Sua criação foi uma bomba de efeito retardado, que veio a explodir no futuro. Na época, não deram a atenção merecida, mas hoje, muito devido aos trabalhos do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, a antropofagia e seus conceitos culturais estão na vanguarda das ciências humanas no Brasil e no mundo”, diz Luís Augusto Fischer, professor de literatura brasileira da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Com a emergência dos estudos pós-coloniais e decoloniais, a antropofagia definitivamente caiu no gosto e na boca do mundo, passando a ser uma das referências conceituais para dar voz e visibilidade aos povos e culturas historicamente oprimidos.
“Antonio Candido fala que a antropofagia é o momento mais rico e importante da dialética modernista. A valorização nacional com abertura para o estrangeiro. Isso é extremamente atual, com a internet nas mãos, a globalização e o multiculturalismo”, explica Marcia Camargos, historiadora social e pesquisadora da Sorbonne Université. Para a estudiosa, Oswald teve alguns insights que depois seriam retomados e teorizados por outros pensadores, como o conceito de aldeia global, mais tarde enunciado pelo filósofo canadense Marshall McLuhan. “Oswald queria uma arte autenticamente brasileira, mas vivia e criou seu conceito numa cidade com dois terços de imigrantes. Nas ruas de São Paulo na década de 1920, era muito difícil falar quem ou o que era brasileiro. Parte da força da antropofagia foi gestada dessa bela e poderosa contradição para sintetizar o caldo cultural da época”, prossegue a pesquisadora.
O mito criador do movimento antropofágico já é bem conhecido, mas vale aqui um resumo. Em seu aniversário de 38 anos, em dia 11 de janeiro de 1928, Oswald de Andrade ganhou um presente de sua então companheira, Tarsila do Amaral. O mimo era um quadro com uma “figura monstruosa, de pés enormes plantados no chão brasileiro ao lado de cactos”, escreveu a pintora em seu diário. O estranho e expressivo desenho “sugeriu a Oswald a ideia da terra, do homem nativo, selvagem, antropófago.” Batizado de Abaporu (em tupi, homem que come gente, ou simplesmente, antropófago) o quadro suscitou uma provocação do escritor Raul Bopp, que também estava presente no convescote do amigo Oswald: “Vamos fazer um movimento em torno desse quadro?”. Mal sabiam os três modernistas que a antropofagia ganharia (e devoraria) o mundo, e que Abaporu seria hoje “o quadro mais importante e representativo da América Latina”, na visão de Kenneth Jackson, brasilianista da Universidade Yale.
A história é boa, tem sua carga de veracidade comprovada pelos registros pessoais de Tarsila, mas é bem provável que seja uma versão edulcorada do processo de criação do movimento. Afinal, o choque cultural entre os europeus, nativos e africanos escravizados já era objeto de investigação de Oswald havia algum tempo, como deixam explícitos o Manifesto da Poesia Pau-Brasil, de 1924, e seu poema Erro de português, de 1927: “Quando o português chegou / debaixo duma bruta chuva / vestiu o índio / que pena! / fosse uma manhã de sol / o índio tinha despido o português”.