Diante do reitor da Harvard, o jovem de blazer e cabelo lambido de gel mede as palavras e as emoções com indisfarçado calculismo. Prestes a se formar num colégio da Califórnia, Payton Hobart (Ben Platt) tenta garantir sua vaga na universidade dos sonhos no ano seguinte. Mas não parece interessado, no fundo, naquilo que um diploma da Harvard pode oferecer à vida profissional. O interlocutor franze a testa quando o rapaz de ego espaçoso comenta, com os olhinhos perdidos de um visionário em transe: desde os 7 anos, ele sabe que será presidente dos Estados Unidos. Não é um desejo nem uma meta, e sim predestinação. Payton será presidente, ponto-final.
Para tanto, o protagonista de The Politician, série disponível desde a sexta-feira 27 na Netflix, devorou todas as biografias de presidentes americanos, detendo-se, em especial, nos que vieram de Ronald Reagan em diante (uma intrincada teoria sobre a transformação dos presidentes em celebridades modernas sai de sua boca para justificar-se). Por que escolheu Harvard? “É a universidade que formou mais presidentes. Sete.” A sabatina do reitor, que a essa altura conta os minutos para se livrar do jovem de modos hiperbólicos, continua: se ele já está quase se formando, por que decidiu concorrer à eleição para presidente do grêmio ginasial? “Esse foi o roteiro da ascensão de Barack Obama e dos Bush”, informa Payton.
Querer é poder — eis um resumo curto e grosso daquilo que o roteirista, diretor e produtor americano Ryan Murphy demonstra, com a inteligência cortante de hábito, em The Politician. A lógica se aplica, em certo sentido, à trajetória do próprio Murphy. Na infância, ele foi um patinho feio desdenhado pelo pai, sujeito de classe média baixa do Meio-Oeste americano que não aceitava o filho gay.
“Ele me perguntava: ‘Por que você não é igual a mim?’. Eu vivia em constante crise existencial”, desabafou Murphy recentemente à revista Time. O autor trabalhou na juventude como um apagado repórter freelancer e, em seguida, foi roteirista sem autonomia na TV aberta americana. Mas, a partir de 2003, quando enfim teve liberdade para exprimir sua veia criativa em Nip/Tuck, drama sobre os bastidores da indústria da cirurgia plástica, Murphy não só conquistou o poder: fez-se a esfuziante encarnação dele na TV.
Da juvenil Glee à irretocável American Crime Story, Murphy acumulou trunfos para cacifar-se como o senhor da era do binge watching, a mania das maratonas. The Politician é o pontapé inicial de uma empreitada que ampliará seu reinado. A série é a primeira da sua parceria com a Netflix — que tirou o passe de Murphy dos canais Fox e FX num negócio espetacular de 300 milhões de dólares.
The Politician condensa as qualidades que fazem de Murphy um talento tão valorizado. Suas séries conseguem ser populares sem abdicar de um charme alternativo. Ele sabe dialogar com o público millennial, temperando a leveza solar com acidez humorística e temáticas sombrias. Suicídio é tabu? Pois bem: lá está Murphy jogando o tema na cara da audiência, logo no primeiro episódio da série.
Por aí, já se nota: embora transcorra num ambiente colegial, The Politician não é amena como Glee. Por meio da personalidade de Payton e das táticas dele para se eleger presidente do grêmio escolar, Murphy faz um compêndio preciso dos traços do “animal político” moderno. Filho adotivo, Payton pode exibir-se como um pobrezinho abandonado pela mãe ou valer-se das vantagens de ter sido acolhido por uma família milionária, conforme lhe seja mais útil. Gwyneth Paltrow corporifica a mãe adotiva infeliz que, com seus mimos, embala o narcisismo transbordante do rapaz que quer ser presidente. Com olhar lânguido, Ben Platt — um talento oriundo dos musicais — sintetiza a sexualidade volátil de alguém que pode ser hétero ou gay de acordo unicamente com seu objetivo maior: alcançar o poder.
Murphy promove um desfile de minorias na tela que funciona como celebração da chamada “diferença”. Mas sua presença serve, sobretudo, para tecer uma crítica mordaz à forma oportunista como os políticos em geral (e os liberais americanos em particular) se aproveitam delas para a autopromoção. Nos embates com sua rival na eleição, Payton ora tira dividendos, ora é alvejado pela movimentação das minorias — mulheres gays negras (como sua vice), deficientes físicos, imigrantes — no xadrez político. O elemento mais saboroso é Infinity (Zoey Deutch), uma mocinha cujo tratamento de câncer é usado pela avó vigarista (Jessica Lange, a musa maior de Murphy) para obter vantagens.
Payton nada nessa maré conforme as ondas da política — e sua dissimulação contém nuances que vão da manipulação agressiva à capacidade de expor suas fragilidades verdadeiramente, se a ocasião o pedir. A sacada de Murphy: Payton contém todos os defeitos dos políticos — mas, ainda assim, é adorável. “Quero fazer o bem às pessoas. Mas não que eu seja uma boa pessoa”, diz. Da Casa Branca a Brasília, atire a primeira pedra quem não assinar embaixo disso.
Publicado em VEJA de 2 de outubro de 2019, edição nº 2654