Surrealismo, 100 anos: mostra em Paris celebra movimento que mudou a arte
A onda marcou época ao trazer à luz a maravilhosa — e agitada — intimidade do ser humano
Salvo de lutar nas trincheiras por ser estudante de medicina, o francês André Breton (1896-1966) não deixou, contudo, de encarar de perto a loucura da Primeira Guerra Mundial. Ao servir em um hospital para combatentes feridos, lidou diretamente com pacientes traumatizados pelo conflito. Ainda que nesse cenário desolador, havia um momento em que ele não escondia sua empolgação: quando aplicava aos soldados um teste inspirado nas recém-popularizadas teorias de Freud, que consistia em lançar uma palavra aleatória ao doente e ouvir suas manifestações espontâneas e devaneios.
Manifesto Surrealista – André Breton
Anos depois, mais precisamente em 15 de outubro de 1924, essas experiências deram origem a um fruto bombástico. Após abandonar a medicina para virar escritor, Breton cavou sua própria trincheira na história cultural ao lançar então o Manifesto Surrealista — pedra de toque de um movimento fadado a marcar para sempre a arte, a literatura e o cinema. No centenário de seu advento, a invenção de Breton é reverenciada de forma fabulosa em Surrealismo, mostra recém-inaugurada no Centro Georges Pompidou — no coração da mesma Paris que acabou de sediar a Olimpíada e, curiosamente, também testemunhava o evento esportivo global no ano em que essa tendência da arte moderna deu seu grito de guerra.
Dicionário abreviado do surrealismo – André Breton e Paul Éluard
Na cena vanguardista da capital francesa de início do século XX, vertentes não menos estridentes como o cubismo e o expressionismo eclodiram ao mesmo tempo, e o surrealismo se impôs ao oferecer uma visão de mundo alternativa às palavras de ordem modernistas. Enquanto a humanidade se excitava com o desenvolvimento das metrópoles e de novas invenções que pareciam colocar o mundo de forma definitiva num rumo racional e próspero, toda uma geração de jovens — incluindo Breton e os escritores e artistas plásticos das futuras fileiras surrealistas, do alemão Max Ernst ao espanhol Joan Miró — se mostrava frustrada com a carnificina provocada pelas disputas geopolíticas e com a devastação econômica que se seguiu à Primeira Guerra.
Dalí – Robert Descharnes e Gilles Néret
O antídoto, para eles, residia num mergulho radical em uma fonte de sabedoria e inspiração que transcendia a suposta esterilidade do mundo moderno: os desvãos instintivos da mente humana, onde se poderia alcançar aquilo que Breton chamava de “maravilhoso”. Na mostra do Pompidou, um conjunto de centenas de obras que são o suprassumo do movimento se distribui num imenso labirinto, que tem em seu centro o original do manifesto de Breton — o mito do refúgio do Minotauro grego era caro aos surrealistas, por refletir uma civilização ainda pura e anterior ao domínio da racionalidade. Àquela altura, o mundo acenava com um menu de ferramentas fresquinhas para dar vazão à criatividade dos surrealistas. Das ideias de Freud, eles tomaram elementos como a fixação no mistério dos sonhos — campo especialmente explorado por pintores como Ernst e Salvador Dalí. “Eu acredito na futura resolução desses dois estados, aparentemente tão contraditórios, que são o sonho e a realidade, em uma espécie de realidade absoluta, de surrealidade, se é que podemos chamar assim”, pregava Breton em seu manifesto.
Por uma Insubordinação Poética: Panfletos e Declarações do Movimento Surrealista – Guy Girard
No caldeirão surrealista cabia ainda a fascinação pelo espiritismo — a escrita ou a pintura “automáticas” se pautavam, por vezes, pela prática mediúnica. Também se incluía no pacote um misticismo humanista expresso, por exemplo, na pintura metafísica de um pioneiro que não chegou a se filiar ao movimento, o italiano Giorgio de Chirico, com suas cenas enigmáticas que fundiam de modo improvável elementos clássicos e modernos.
Essa combinação caótica de objetos, personagens e cenários estranhos é, afinal, o que provoca impacto na arte surrealista. O termo surreal foi pego de empréstimo de um comentário do poeta Guillaume Apollinaire sobre uma peça teatral — significa algo como “super-real” ou “acima da realidade”. Uma sensação traduzida com divertida ironia por um artista como o belga René Magritte que, em seus quadros, abole por completo a escala de tamanho das coisas e não está nem aí para as regras básicas da física.
A Corneta – Leonora Carrington
As cabecinhas singulares do surrealismo eram um caldeirão de contradições. Na política, os sinais trocados se revelavam tão inacreditáveis quanto suas criações. Próximo de figuras como o revolucionário russo Leon Trotsky, Breton fazia questão de ligar o movimento à doutrina comunista. Alguns anos após lançar seu manifesto, porém, ele se achou obrigado a lançar um segundo para, entre outras questões, reforçar o compromisso com o marxismo e recusar as acusações de que o surrealismo tomara um rumo retrógrado e conservador. Uma polêmica que atingiu seu ápice com a expulsão de Dalí do grupo, por sua simpatia pelo franquismo e fascismo. Dizendo-se um “anarcomonarquista”, Dalí rebateu com uma tirada à altura de seu ego: “O surrealismo sou eu”. O pintor catalão, por sinal, personificava as incoerências dessa turma. Certa vez, Dalí mostrou uma de suas telas a Freud em busca de aprovação. Mas o teórico austríaco rechaçou que aquela criação onírica fosse um retrato do inconsciente, como Dalí brandia. Para horror do surrealista, Freud só viu nela a tentativa racional de emular a vida interior.
É paradoxal, por fim, a maneira como o surrealismo se relacionou com as mulheres. Seus artistas masculinos exploraram com avidez o clichê machista da mulher-objeto — e dá-lhe quadros com torsos femininos nus e moças lânguidas desprovidas de cabeça. A despeito disso, nenhuma vanguarda modernista abriu tanto espaço para as mulheres. O próprio Dalí era conduzido na coleira curta por sua esposa, Gala, que foi modelo e influência crucial em suas obras, além de gerir suas finanças. Mais que isso, as hostes surrealistas abrigaram um rol de artistas talentosas. A mais famosa delas foi a britânica Leonora Carrington, criadora de telas hoje valorizadas que mesclam influências medievais e do universo do autor inglês Lewis Carroll e sua Alice no País das Maravilhas. Na mostra do Pompidou, é possível apreciar também trabalhos da francesa Dora Maar, injustamente mais conhecida por sofrer abusos nas mãos do espanhol Pablo Picasso, ou as estranhas pinturas da americana Dorothea Tanning e da belga Suzanne van Damme. Uma curiosa escultura em metal feita pela francesa de origem egípcia Joyce Mansour, de 1969, lembra vagamente a forma de um coronavírus. Como se vê, não havia limites para a imaginação. Se o maravilhoso mundo desbravado por Breton nos ensina algo, é que a humanidade precisa continuar sonhando, apesar de tudo.
Publicado em VEJA de 6 de setembro de 2024, edição nº 2909