Em Lady Lazarus, poema emblemático da americana Sylvia Plath (1932-1963), a jovem aspirante a escritora, infeliz com o relacionamento conturbado com o ex-marido, o poeta inglês Ted Hughes (1930-1998), discorre sobre suas perturbações enquanto flerta com o fim. “E eu uma mulher sempre sorrindo / Tenho apenas 30 anos / E como o gato, nove vidas para morrer.” Em um dos episódios mais trágicos da literatura americana, Sylvia desistiu da vida poucos meses após tecer o poema. No bilhete de despedida, apenas o nome e o número de seu psiquiatra. O adeus viria de fato na publicação póstuma de dezenas de textos inéditos, produzidos por ela incansavelmente nas madrugadas perto de sua morte, aos 30 anos.
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Até então, Sylvia havia publicado apenas um livro de poesias, além de contos em periódicos literários. No material deixado por ela, estavam os poemas que a alçariam ao posto de autora incontornável, junto de crônicas, contos e divagações pessoais. Parte desse espólio em prosa deu origem a um livro publicado em 1977, quinze anos depois da morte da autora, em 11 de fevereiro de 1963, de uma autoinfligida intoxicação por monóxido de carbono. Outra versão tida como definitiva, que inclui contos considerados perdidos, trechos do que sobreviveu de seu diário (Hughes destruiu uma parte) e fragmentos jornalísticos, acaba de ganhar a primeira edição no Brasil. Johnny Panic e a Bíblia de Sonhos abarca catorze anos de produção, percorrendo desde seu texto mais antigo, feito quando tinha 17 anos, até o último, Blitz de Neve, criado nos derradeiros últimos dias de vida. Na crônica, ela descreve o árduo cotidiano em um apartamento gélido em Londres, para onde se mudou com os dois filhos após a separação, durante um tenebroso inverno — contexto ambiental apontado como agravante da sua condição depressiva.
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Aclamada por seus poemas confessionais, construídos com métrica elegante e equilibrada, Sylvia transita das sutis variações da melancolia à falta de chão de quem almeja fugir da realidade. Na prosa, sobretudo, ela demonstra a qualidade que a mantém em alta até os dias de hoje: um olhar aguçado sobre dilemas profundos da alma. Há no livro desde sentimentos dos mais frugais até investigações complexas da condição humana. Do temor de uma criança acusada de algo que não fez, passando pela adolescente que almeja pertencer a uma irmandade no colégio, a casais em crise buscando uma reconexão. Entre os personagens, salta aos olhos a secretária de um hospital psiquiátrico obcecada por uma entidade causadora de suas paranoias — o Johnny Panic do título. É um possível alter ego de Sylvia, que foi recepcionista da clínica onde ela própria foi diagnosticada com transtorno mental e tratada com eletrochoques. Especialistas dos dias de hoje alegam que ela sofria de transtorno bipolar.
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De poeta oprimida, vinda de uma família desestruturada para cair em um casamento abusivo, Sylvia ganhou os holofotes com um empurrão da segunda onda feminista, nos anos 70. A autora foi transformada pelo movimento em musa sofredora de uma sociedade que não lhe dava ouvidos. Biografias mostram que sua tristeza crônica teria se agravado com as traições e o trato violento do marido famoso, além da rotina de dona de casa, que a impedia de escrever com a frequência desejada. Sylvia ganhou nova relevância recentemente, quase sessenta anos após sua morte, como uma espécie de símbolo pop da melancolia atual. Versos de sua autoria estampam de camisetas a publicações nas redes sociais. Assim como o Lázaro bíblico inspirou Lady Lazarus, seu poema célebre, Sylvia atesta a previsão de seus versos finais: “Saída das cinzas / Eu me levanto com meu cabelo ruivo / E devoro homens como ar”. A seu modo, ela renasceu para a eternidade.
Publicado em VEJA de 21 de outubro de 2020, edição nº 2709
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