‘Temos o diabo em nós’, diz Anthony Hopkins sobre como invocou Hannibal Lecter
Leia passagem inédita do livro de memórias do ator, 'Até que Deu Tudo Certo', que chega às bancas em novembro
Anthony Hopkins tinha a geografia contra si durante os teste para viver Hannibal Lecter no filme O Silêncio dos Inocentes: por que um ator inglês seria a escolha ideal para dar vida a um assassino em série americano? O questionamento dos produtores foi rebatido com esperteza por ele: “não sou inglês, sou galês”, atestou Hopkins antes de conquistar o papel que lhe rendeu um Oscar de melhor ator em 1992.
Não demorou para que as barreiras geográfica se mostrassem insignificantes diante da performance do britânico, que vestiu a pele do canibal americano como quem tem a essência do mal dentro de si. Já na mesa de leitura, ao encarnar Lecter pela primeira vez, Hopkins fez as entranhas de Jodie Foster congelarem com a frieza do assassino. “Dava para ouvir um alfinete caindo no chão. Uns dois segundos depois de eu começar a falar como Lecter, vi Jodie ficando tensa. Mais tarde ela confirmou que estava mesmo petrificada. E aquela pequena distância entre nós se manteve durante toda a filmagem”, revela o ator em um trecho de Até Que Deu Tudo Certo, livro de memórias que chega às estantes no dia 4 de novembro, publicado no Brasil pela editora Sextante.
Liberado com exclusividade para VEJA, o trecho inédito mergulha na construção de Hannibal Lecter, personagem que fez de Hopkins um dos atores mais aclamados de Hollywood, e transformou O Silêncio dos Inocentes em um clássico do horror. Aos 87 anos de idade, o ator revela ao público como seus demônios internos e o terror por aranhas na infância foram fundamentais para a construção do personagem que consolidou sua carreira e marcou a história do cinema.
Confira, a seguir, o trecho na íntegra:
– Você não quer um ator americano? – perguntei a Jonathan Demme.
Ele riu e respondeu com outra pergunta:
– Você não quer o papel?
– Sim, quero, sim – assegurei. (Não faça perguntas, seu idiota!, falei a mim mesmo.)
– Quero muito.
Um produtor que estava na mesa confessou:
– Tínhamos nossas dúvidas sobre usar um ator inglês para interpretar um assassino americano.
– Bom, nesse caso tudo bem – afirmei. – Não sou inglês; sou galês.
Eu sabia que eles não tinham motivo para se preocupar porque eu instintivamente sentia exatamente como deveria interpretar Hannibal. Tenho o diabo em mim. Todos temos o diabo em nós. Sei o que assusta as pessoas. O segredo é incorporar ao mesmo tempo duas atitudes interiores que não coexistem com frequência – ele era ao mesmo tempo distante e alerta.
Eu já tinha encontrado essas duas coisas numa mesma entidade uma vez, muito cedo na vida, e isso se tornou parte do meu inconsciente infantil. Eu sofria de um medo terrível de aranhas e, infelizmente, morávamos numa casa velha cheia de criaturas rastejantes e escorregadias. Uma noite acendi a luz na padaria do meu pai e, bem ao lado do interruptor, havia uma aranha preta enorme – paciente e imóvel, e ao mesmo tempo completamente alerta. Dei um pulo de susto.
O efeito que eu queria causar como Hannibal era esse. Eu queria ser a aranha na padaria do meu pai, de modo que, assim que a câmera o enquadrasse, Lecter se revelasse em pura prontidão e completa imobilidade. Olhar alguém por muito tempo deixa a pessoa incomodada. O distanciamento atrai a testemunha – ou vítima – para perto e para dentro do círculo da personalidade do predador.
Pensei no que tinha aprendido sobre o gesto psicológico e intuí a estrutura interna da mente de Hannibal Lecter. O elemento essencial: relegar a segundo plano o fator de movimento do peso e da sensação – ou intenção. O maior poder de Lecter estava em seu pensamento penetrante e em sua intuição constante. Isso transpareceria também na clareza perfeita de sua fala.
Depois que comecei a atuar no cinema, trabalhei duro para ficar imóvel, porque manter atenção direta e constante por muito tempo não é da minha natureza. E, para esse papel, tive que cultivar essa disposição ao extremo. Hannibal precisava estar alerta e distante para criar um carisma hipnotizante. O caminho para alcançar isso estava na imobilidade.
No primeiro dia da mesa de leitura, não tive a chance de conversar com Jodie Foster antes de começar. Entramos direto no texto. Embora eu normalmente não faça uma atuação completa na mesa de leitura, quis mostrar o que era capaz de fazer, então fui o mais assustador possível. No fim das contas, foi beeem assustador. Dava para ouvir um alfinete caindo no chão. Uns dois segundos depois de eu começar a falar como Lecter, vi Jodie ficando tensa. Mais tarde ela confirmou que estava mesmo petrificada. E aquela pequena distância entre nós se manteve durante toda a filmagem.
Para meu primeiro encontro com Clarice, Jonathan Demme perguntou o que eu queria estar fazendo quando ela descesse o corredor escuro para me entrevistar na minha cela.
– Você quer estar pintando? Lendo? Dormindo? Sentado na cama?
– Não – respondi, pensando na aranha na parede da padaria. – Quero estar em pé, calmamente esperando por ela.
– Por quê?
– Porque estou sentindo o cheiro dela descendo o corredor.
– Ah, meu Deus, você é doente, Hopkins – disse Demme, e riu.
Ele achou aquilo arrepiante e absolutamente correto.
Expliquei que Lecter tinha que se apresentar como uma pessoa extremamente civilizada. Insisti que o figurinista me desse um macacão de prisão bem ajustado, não largo, por exemplo. Eu disse que Lecter pagaria um alfaiate para ajustá-lo, porque se importava com esse tipo de coisa. E quando Clarice desce o corredor cheio de lunáticos gritando e jogando coisas, vemos o Dr. Lecter no fim do corredor, em pé, esperando educadamente em seu macacão com bom caimento, cumprimentando-a com sua completa e ininterrupta atenção. Ele é um monstro, mas um monstro que anda silenciosamente pela noite.
Para este papel, também recorri às minhas experiências de infância imitando Bela Lugosi no internato. Quando criança, fui vê-lo em Drácula, que tinha sido um dos primeiros livros grandes que li. No livro, o protagonista, Jonathan Harker, se corta ao se barbear e sente a atenção total de Drácula. O som que imaginei que o vampiro faria naquele momento, desejando o sangue de Harker, era uma combinação muito particular de sibilo e sucção. Foi daí que tirei o som que fiz com os lábios ao interpretar Hannibal, que muita gente imita. Obrigado, Drácula.







