Quatro anos atrás, Gloria, de Sebastián Lelio, nascido na Argentina e radicado no Chile, saiu do Festival de Berlim com o Urso de Prata de melhor atriz para Paulina Garcia. Nesta 67ª edição, o diretor tem a chance de repetir o feito com Una Mujer Fantástica, e ainda entrar na história como um dos primeiros grandes prêmios do cinema para uma atriz transgênero – isso se não ganhar um troféu mais importante.
Daniela Vega faz uma interpretação contida, cheia de nuances, como Marina, que acabou de se mudar para o apartamento de seu namorado mais velho, Orlando (Francisco Reyes). Uma noite, ele passa mal, cai na escada e morre no hospital por causa de um aneurisma. As provações de Marina começam ali, quando ela ainda está em choque.
Um médico desconfia que ela é prostituta e um policial insiste em chamá-la pelo nome masculino que consta em sua carteira de identidade. Piora com a família de Orlando. Ao devolver o carro para a ex-mulher dele, Sonia (Aline Küppenheim), ouve: “Quando te vejo, não sei o que vejo”. Um dos filhos de Orlando, Bruno (Nicolás Saavedra), invade o apartamento e fala que não sabe “o que” ela é. Bruno vai ficando cada vez mais agressivo, apesar de Marina só ter pedido algumas semanas para desocupar o imóvel. Gabo (Luis Gnecco), irmão de Orlando, parece um pouco menos cruel, mas também quer evitar escândalos a qualquer custo.
Marina é proibida de comparecer ao velório e ao enterro. A polícia também a procura. Adriana (Amparo Noguera), que investiga o caso, quer estabelecer se Marina espancou Orlando (que estava machucado por causa da queda) ou foi estuprada. Mas sua abordagem não é nada simpática, incluindo um exame corporal que é agressivo e humilhante.
Marina parece ter o mundo contra ela, e a grande sacada do filme é contar a história inteiramente sob seu ponto de vista. Para ela, naquele momento, parece mesmo. Marina resiste e insiste em fazer tudo em seus próprios termos. Com ares de Alfred Hitchcock e Pedro Almodóvar, Una Mujer Fantástica, que tem produção de Pablo Larraín (Jackie) e Maren Ade (Toni Erdmann), mescla o registro realista com algumas cenas mais impressionistas, como uma em que ela se transforma em estrela numa boate e outra em que caminha contra o vento.
Como Gloria, a protagonista do filme anterior que precisava aprender a nadar contra a corrente numa sociedade cega para as mulheres mais velhas, Marina também luta contra a ventania, aqueles que desejam determinar quem ela é, como se ela mesma não fosse a única capaz de fazer isso.