Uma casa com muitos endereços, um veículo com espaço para cozinhar, lugares incríveis a explorar. Com a pandemia do novo coronavírus, as vendas de trailers e motorhomes, que já vinham em trajetória de alta nos últimos anos, ganharam novo empurrão. A crise sanitária tem estimulado as pessoas a trocar os destinos internacionais por viagens domésticas, com menor exposição ao vírus, e a buscar alternativas aos aviões e hotéis. A rotina de Aidyr Muniz de Jesus, 64 anos, se divide entre o apartamento em São Paulo, uma casa em Itu, no interior paulista, onde vive com a mulher, e o motorhome desenhado a partir do modelo Sprinter, da Mercedes-Benz. “É a nossa casa”, diz o engenheiro aposentado, que já viajou para paraísos turísticos na Bahia, Minas e Tocantins, entre muitos outros. O veículo — uma residência ambulante com 18 metros quadrados de espaço interno — acaba de voltar de um período de vinte dias em Santa Catarina.
Os fabricantes comemoram a onda. No Grupo Fun, dono da marca Legend, especializada em motorhomes e trailers, foi preciso aumentar a equipe de produção, que passou de trinta para sessenta funcionários. Em 2019, a linha de montagem despachava dois veículos mensalmente. Em 2020, o número saltou para quatro. Se antes a carteira de clientes era dominada por casais aposentados, atualmente é a faixa entre 30 e 50 anos que movimenta o setor. Em geral, são profissionais bem estabelecidos, já que motorhomes da marca custam entre 450 000 e 750 000 reais. Além de dinheiro, é preciso ter paciência. No Grupo Fun, a espera pela entrega do veículo hoje chega a oito meses.
Ao contrário de outros bens de consumo voltados à alta renda, quem compra esse tipo de veículo não busca necessariamente luxo, mas conforto. Entre as facilidades estão lavadora de roupas, cozinha na parte externa do motorhome e placas de energia solar. A Legend tem no portfólio modelos inspirados em iates, com iluminação em led e piso que imita os deques de embarcações. Com a perspectiva de crescimento do mercado, a empresa preparou novos planos. Um deles é inaugurar em 2021, no Balneário Camboriú (SC), uma “marina seca”, onde os donos de motorhomes e trailers poderão deixar suas peças muito bem guardadas, como em uma marina de barcos.
Como quase tudo hoje em dia, a explosão do mercado tem relação com a pandemia. O home office ajudou o segmento a despontar. “O distanciamento social compulsório criou essa possibilidade para quem não precisa ir ao escritório. Você pode escolher a paisagem onde quer trabalhar”, afirma Alisson Paulo Ramos, fundador da Apolo Trailer, de Campo Alegre (SC), cujas vendas aceleraram 30% em 2020 — é o maior avanço dos últimos oito anos. Por causa da eclosão do vírus e com a demanda aquecida, o prazo de entrega, antes de quatro a cinco meses, passou a ser de oito meses. “Muitos clientes chegam a comprar o motorhome para vender com ágio de até 10%”, diz o empresário.
É provável que a adesão aos motorhomes não diminua com o fim da crise sanitária. “Os mais jovens enxergam na atividade um estilo de vida, a possibilidade de se aproximar da natureza”, diz Alexandre Boff, diretor da feira de Expo MotorHome, que teve a versão 2020 adiada para 2021. “Não vejo como esse mercado poderá encolher.” Com a experiência de quem acampou pela primeira vez aos 8 anos de idade e já teve vários veículos para esse tipo de viagem, Boff afirma que as aventuras na estrada não são para qualquer um. Antes, diz ele, é preciso avaliar se existe afinidade com a vida sobre rodas e com as adversidades que, por vezes, se impõem, como um pneu furado ou um problema mecânico qualquer. Do contrário, o prazer da viagem poderá virar dor de cabeça.
Apesar da expansão, os adeptos das viagens com motorhome ainda sofrem com a falta de infraestrutura do país — desde a péssima qualidade das estradas, salvo exceções, até a pouca oferta de campings, passando por problemas de segurança a oficinas mecânicas despreparadas para atender a esse tipo de veículo. Trata-se, sem dúvida, de um desperdício. Poucos países deveriam ser tão convidativos para passeios “on the road”. Nação de dimensões continentais, o Brasil tem uma diversidade infinita de paisagens raras, de montanhas a praias, florestas e metrópoles. Nesse aspecto, o território brasileiro é tão favorável para os viajantes quanto o americano. Não à toa, nos EUA muitas pessoas têm por tradição viajar pelo país no período das férias em veículos que acomodam toda a família. Isso está longe de ocorrer no Brasil, mas é inegável que há cada vez mais gente na estrada querendo viver em movimento.
Publicado em VEJA de 10 de fevereiro de 2021, edição nº 2724