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Walcyr Carrasco reabilita novela das 21h e diz não ter medo de séries

Em entrevista a VEJA, autor de 'A Dona do Pedaço', da Globo, trabalha de olho no ibope e explica por que disse certa vez que todo mundo é bissexual

Por Fernanda Thedim
Atualizado em 4 jun 2024, 15h40 - Publicado em 5 jul 2019, 06h30

Há trinta anos escrevendo novelas, o paulista Walcyr Carrasco, 67 anos, está muito prosa: encarregado de reabilitar o horário das 21 horas, que a arrastada O Sétimo Guardião enterrou em níveis nunca vistos, sua nova trama, que conta a história da doceira Maria da Paz, superou logo na primeira semana o pico de audiência da antecessora. Atualmente, a 19ª novela de sua carreira está na casa dos 30, 35 pontos de audiência, patamar que a antecessora nunca alcançava. Carrasco explica que, sim, tem truques que costumam não falhar, como espalhar dramas e viradas inesperadas por toda parte. “A Dona do Pedaço está só no começo. Ainda vem muita reviravolta por aí”, promete. Enquanto desenrola a história da sofrida e guerreira personagem de Juliana Paes (“Clichê é definição de alguma coisa que foi feita muitas vezes, deu certo e ainda funciona”, ensina), Carrasco, escritor multifunção que não fica parado, continua a postar o tempo todo nas redes sociais. Seu livro Sobre a Capacidade de Amar e Outros Assuntos Poéticos, um compilado de contos publicados na internet, acaba de ser lançado e outros dois, adaptações de Monteiro Lobato para o público infantil (“só que sem racismo nem outras incorreções políticas”), sairão em agosto. Em um intervalo na correria, ele falou a VEJA em seu apartamento de frente para o mar no Leblon, na Zona Sul do Rio de Janeiro.

Existe fórmula para uma novela dar certo? Ela precisa ter muito conflito e um forte traço de realidade, de modo que as pessoas se vejam refletidas na tela. Retrato o que as pessoas são, sem idealização, e não como deveriam ser. Às vezes sou até criticado por isso. Reclamam: “Ah, você está sendo politicamente incorreto, o diálogo tal está estranho”. Mas os diálogos são coerentes com a maneira como as pessoas se expressam na vida real, na rua, no trabalho, em família. E o que se vê por aí não é um mundo de falas suaves, educadas, sempre corretas e justas. No caso de A Dona do Pedaço, ainda bebo da fonte de Shakespeare e seu Romeu e Julieta. É claro que ajuda, né?

E quanto ao ritmo das novelas, ele está mudando? O mundo de hoje é todo mais rápido. Não dá para a narrativa ser arrastada: todo capítulo precisa ter um clímax. Esse compasso em que a trama alcança um ápice diariamente se inspira, em certa medida, no ritmo das séries de televisão, que é mais ágil.

“Tem ator que aceita o papel e depois fica tentando adequar o texto ao que gostaria de dizer. Percebo na hora. Perco a vontade de escrever para aquela pessoa e até a tiro da trama”

Por que Aguinaldo Silva, seu antecessor no horário nobre, fracassou com O Sétimo Guardião? Não vi a novela. Não posso dizer.

O senhor já tem a história de A Dona do Pedaço toda arquitetada na cabeça? Parece mentira, mas não planejo nada. Só sento e escrevo. Estou trinta capítulos à frente. Agora, eu me dedico a um por dia. Nunca sei ao certo o que vai sair dali. Acredito que as ideias ganham força quando o autor deixa espaço para a espontaneidade.

Como o senhor lida com o retorno que vem das pesquisas de opinião? Com ansiedade. Assisto à novela com o celular na mão, acompanhando o ibope minuto a minuto. Assim, tenho uma visão do que está funcionando ou não. Se um capítulo é bom, no dia seguinte a audiência dispara. Se ele é mediano — e não é sempre que você consegue ser genial —, a conta aparece no outro dia, com uma audiência mais devagar.

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Dependendo da avaliação do público, o senhor muda a trajetória da história? Isso acontece, sim. Em A Dona do Pedaço não foi preciso ainda. A Maria da Paz, interpretada pela Juliana Paes, virou um personagem icônico do dia para a noite. Acho que é porque estamos falando de uma moça que veio de baixo, uma doceira que subiu na vida como tanta gente já experimentou ou almeja. Em outras tramas que escrevi o ibope pesou. Em Morde & Assopra (novela das 7 que se encerrou em 2011), a mãe sofredora vivida pela Cássia Kis foi tão bem avaliada que resolvi dar mais espaço a ela.

Já aconteceu o contrário, atores que começaram com grandes papéis e foram perdendo a relevância por não fazer sucesso? Sim, claro.

Poderia citar algum exemplo? Não seria delicado ficar aqui elencando nomes, mas às vezes há discordâncias entre o que eu quero e o que o ator faz. Alguns aceitam um papel só porque ambicionam o trabalho. Aí ficam tentando adequar o texto àquilo que eles gostariam de dizer. Percebo na hora, assisto à novela com toda a atenção. Esse tipo de postura me desestimula mesmo. Em geral, perco a vontade de escrever para aquela pessoa e, em casos extremos, até tiro o personagem da história.

Por que escolheu Juliana Paes para ser a protagonista de A Dona do Pedaço? Foi uma sugestão do Silvio de Abreu. Contei a ele sobre o papel e disse que precisava de uma atriz do povo, guerreira, alegre, e ele veio com o nome da Juliana. Está dando certo, assim como a Paolla Oliveira, que tem a cara da digital influencer Vivi.

“Se eu for pensar no politicamente correto em cada diálogo, vou acabar fazendo uma cartilha. Quando lanço temas polêmicos, estimulo a reflexão. A polêmica nunca me incomodou”

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O senhor voltaria a trabalhar com a Marina Ruy Barbosa mesmo depois de ela ter se recusado a cortar o cabelo em sua novela Amor à Vida? Eu tive esse problema com Marina e decidi tirá-la da novela. Mas é uma boa atriz, muito empática. Cogitei inclusive chamá-la para outra novela minha, e a chamaria, sim. Quem trabalha nesse mundo precisa ser ao mesmo tempo técnico e pragmático.

O que o pragmatismo tem a ver com a escalação de Gretchen para uma participação especial em A Dona do Pedaço? Queria uma pessoa popular e engraçada para ser namorada do Marco Nanini.

Considera Gretchen uma boa atriz? Não. Eu a acho interessante e sei que as pessoas têm vontade de vê-la atuar. Já fiz isso em outras novelas. Traz uma surpresa à trama. Depois da Gretchen, virá Luan Santana.

Como lida com críticas ferozes? Minha série Verdades Secretas (de 2015) foi pichada pela crítica do começo ao fim. Não houve um dia em que não falassem mal. E o que aconteceu? Ganhamos o Emmy (a maior premiação da TV). É preciso saber peneirar as críticas. Se eu tivesse ouvido tudo o que já disseram do meu trabalho desde que comecei, teria parado de escrever há muito tempo.

Com uma exceção aqui, outra ali, as novelas vêm consistentemente perdendo público. O gênero tende à extinção? Há décadas que as pessoas dizem que a novela vai morrer. Enquanto isso, ela se populariza no mundo — Turquia, Filipinas, Portugal, todos estão produzindo e vendendo suas novelas por aí. Como afirmar que elas estão se extinguindo em um ambiente de efervescência como esse?

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O senhor vê nas séries uma ameaça às novelas? Nem um pouco. Eu digo que existe uma via de mão dupla entre os dois gêneros. Certas séries bebem das novelas extraindo delas o viés melodramático. Um bom exemplo é Downton Abbey, produção inglesa estilo trama das 18 horas. As novelas, por sua vez, estão ganhando a agilidade das séries.

Afinal, como é escrever novela na era do politicamente correto? Se eu for pensar no politicamente correto em cada diálogo, vou acabar fazendo uma cartilha. Quando lanço assuntos polêmicos e eles viram alvo de discussão, estimulo a reflexão das pessoas. Se apresentasse o mundo idealizado, onde ninguém fala nada feio, nada de errado, estaria mentindo. Podem me criticar. A polêmica nunca me incomodou.

Seu próximo livro é uma adaptação da obra de Monteiro Lobato em que o senhor retira trechos e referências do original justamente à luz do politicamente correto. Não seria contraditório com o que diz? A cartilha politicamente correta virou uma patrulha muito chata, sim, mas a questão do racismo ficou muito séria também. E é nesse ponto que eu mexo em minha adaptação de Lobato. É claro que existe um contexto histórico em que ele escreveu, precisamos entender isso, mas trata-se de uma obra voltada ao público infantil. A criança que ler a Narizinho chamando uma negra de “negra beiçuda” poderá repetir isso na hora do recreio. As pessoas falavam assim antes, mas agora mudou. O preconceito precisa ser expurgado da linguagem.

O senhor foi o primeiro autor a escalar uma negra para o papel de protagonista — Taís Araujo, em Xica da Silva. Até que ponto os negros venceram a barreira do preconceito na dramaturgia? Ainda falta chão. Poderíamos ter mais negros em novelas, e em papéis diferentes. Estou me desafiando a colocar negros em posições de destaque na sociedade; que não sejam só a doméstica ou o motorista. Em A Dona do Pedaço, a antagonista é negra, uma fisioterapeuta que vira corretora de imóveis, e a irmã dela, professora de inglês. A novela reflete o mundo fora das telas, mas também pode ser vanguarda e incentivar a tolerância. Que isso não se confunda com um enredo em que todo mundo age bem e dentro do esperado. As boas novelas são aquelas que têm os melhores vilões — e a gente reconhece um quando as pessoas estão com muita raiva dele.

A sociedade brasileira não é conservadora demais para encarar um personagem transexual que tem medo de revelar sua identidade ao namorado e perdê-lo, como nesta novela? O público brasileiro é muito menos conservador do que se imagina. Hoje vou ao shopping e vejo a toda hora casais homossexuais andando de mãos dadas, beijando-se. Nessa última parada gay, observei inclusive grandes empresas apoiando o evento. Isso não existia até bem pouco tempo atrás. E se existe agora é porque a rejeição está caindo. Antes seria ruim para o produto associar-se à causa; hoje não mais. As coisas estão avançando. E a TV tem contribuído para aumentar a transparência e normalizar temas antes tratados como tabu.

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O senhor declarou em uma entrevista ser bissexual e afirmou ainda que “todo mundo era”. Pode esclarecer melhor essa ideia? Eu não me expliquei direito. O que quis dizer é que as pessoas estão cada vez mais abertas a experimentar o novo nesse campo da sexualidade. Não é mais raro, por exemplo, ver mulheres transexuais que mantêm relação com outra mulher. São homens que querem ter um corpo feminino mas continuam com desejo por mulheres. A sociedade está em constante mutação, e observo cada vez mais possibilidades.

Como veterano nos bastidores da televisão brasileira, o senhor pode dizer se os casos de assédio sexual que estão vindo à tona são comuns no meio? O assédio está presente em todos os departamentos da sociedade, não só na TV. Sempre aconteceu, sempre incomodou as mulheres, mas elas não se sentiam à vontade para expor o problema. Isso está mudando.

A punição ao José Mayer, demitido da Globo depois de um escândalo de assédio, foi justa? Não conheço os detalhes. Se o que foi divulgado de fato ocorreu, a demissão é justa, sim. Uma pessoa nunca pode usar o poder para subjugar alguém.

Publicado em VEJA de 10 de julho de 2019, edição nº 2642

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