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Werner Herzog: as memórias impagáveis de um cineasta selvagem

Adorado pela nata de Hollywood, o diretor alemão nunca abriu mão de sua ousadia assombrosa — agora, revê sua vida singular num livro de memórias

Por Diego Braga Norte 9 jun 2024, 08h00

Se fosse vertida em filme, a vida do alemão Werner Herzog renderia um drama épico de primeira. Ele nasceu na bombardeada Munique em 1942, durante a Segunda Guerra; teve uma infância paupérrima num vilarejo bávaro; aos 16 anos, trabalhou num barco pesqueiro na ilha grega de Creta; aos 19, aventurou-se pelo norte da África e quase morreu no Cairo; aos 23, ganhou uma bolsa para estudar nos Estados Unidos, mas, depois que seu visto expirou, teve de fugir para o México por risco de ser deportado; no país latino, trabalhou como palhaço e se machucou seriamente, fato que o motivou a mudar de ramo e virar contrabandista. Viveu tudo isso antes de completar 25 anos — e só a partir de então viria a parte da biografia que o consagrou: a gloriosa carreira de diretor que, com ousadia e determinação férrea, mudou conceitos no cinema.

FERA INDOMADA - Herzog hoje: aos 81, ele narra suas peripécias épicas sem incorrer no pecado do autoelogio
FERA INDOMADA - Herzog hoje: aos 81, ele narra suas peripécias épicas sem incorrer no pecado do autoelogio (Pascal Le Segretain/Getty Images)

No livro de memórias Cada Um por Si e Deus contra Todos, que está saindo no Brasil, Herzog — hoje aos 81 — conta as muitas peripécias de sua vida. Além de diretor de filmes que assombraram os anos 1970 e 1980, como Aguirre, a Cólera dos Deuses e Woyzeck, que ajudaram a moldar a definição de cinema de arte, ele é um escritor calejado. Daí, talvez, venham alguns méritos da obra: não é um livro cronológico e linear, mas uma seleção de passagens de sua atribulada vida, com memórias mais antigas atravessando relatos mais recentes. Ele não comete um pecado comum em autobiografias: o autoelogio. É irônico e crítico de si mesmo. E, apesar do título sugerir uma pessoa individualista, desfaz a impressão ao se mostrar generoso com amigos e colaboradores.

CADA UM POR SI E DEUS CONTRA TODOS, de Werner Herzog (tradução de Sonali Bertuol; Todavia; 368 páginas; 99,90 reais e 69,90 reais em e-book)
CADA UM POR SI E DEUS CONTRA TODOS, de Werner Herzog (tradução de Sonali Bertuol; Todavia; 368 páginas; 99,90 reais e 69,90 reais em e-book) (./.)

Com 48 filmes e 27 óperas no currículo, Herzog é um dos diretores mais admirados por seus pares, com uma legião de fãs na nata hollywoodiana. Apesar dos muitos convites para fazer o chamado “cinemão”, com orçamentos polpudos e astros à disposição, nunca topou sair da sua trincheira autoral e abrir mão da forma quase artesanal de fazer filmes. No livro, o diretor se define como o “mainstream do alternativo” e revela que quase filmou em Hollywood quando Jack Nicholson se interessou em fazer o protagonista de Fitzcarraldo. Desistiu ao saber que o ator e “a 20th Century Fox queriam rodar o filme no Jardim Botânico de San Diego, com um navio miniatura de plástico”.

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O filme de 1982, que lhe rendeu o prêmio de melhor diretor em Cannes, é um tour de force gravado na Amazônia. A obra retrata a derrocada de Brian Fitzgerald (chamado de Fitzcarraldo pelos locais), irlandês que queria construir uma ópera no meio da floresta. Em sua obsessão e loucura, ordena que seu navio de mais 300 toneladas seja transportado por terra de um rio para outro. A cena da transposição da embarcação, ao som de uma ária de Enrico Caruso, é um marco.

ATOR-FETICHE - Kinski no longa Aguirre: astro — e inimigo — favorito
ATOR-FETICHE - Kinski no longa Aguirre: astro — e inimigo — favorito (./Divulgação)

Nas filmagens, Herzog teve de lidar com os disparates de seu tresloucado ator-fetiche, o polonês Klaus Kinski. Protagonista de cinco de seus filmes e dono de personalidade mercurial, Kinski era do tipo que brigava com todos, inclusive com ele mesmo. Seus constantes ataques de fúria levaram os indígenas a fazer uma proposta para Herzog: ofereceram-se para matar Kinski. “Recusei educadamente, mas sei que, caso tivesse aceitado, no mesmo instante eles teriam passado à ação”. relembra. “Naquela época, ele era como um demônio.” A relação entre os dois ocupa boa parte do livro. Coincidentemente, moraram na mesma pensão na Munique do pós-guerra. Herzog tinha 13 e Kinski, 26 anos. O então ator já era considerado brilhante, mas endiabrado. Discutia com a plateia no teatro, andava nu pela pensão, dispensava camas e dormia sobre folhas secas. “Como contestador de toda a civilização, ele também se recusava a usar talheres”, lembra o diretor. E, claro, tinha constantes rompantes de ira. “Eu sabia no que estava me metendo quando, quinze anos depois, comecei a trabalhar com ele.” No documentário Meu Melhor Inimigo (1999), Herzog revisita seu convívio com Kinski, morto em 1991.

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No set de Fitzcarraldo, um acidente deixou um indígena paraplégico, um trabalhador foi alvejado por uma flecha e outro, picado por uma cobra. A cena do transporte do navio era tão complexa que o diretor teve sua sanidade questionada. O longa é uma síntese do cinema de Herzog, que muitas vezes retratou a vã tentativa humana de vencer a natureza. Por extensão, o livro é o esforço do cineasta selvagem para organizar seu espírito livre e caótico. Pairam dúvidas se obtém êxito. Mas, como literatura, é uma delícia.

Publicado em VEJA de 7 de junho de 2024, edição nº 2896

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