Se fosse vertida em filme, a vida do alemão Werner Herzog renderia um drama épico de primeira. Ele nasceu na bombardeada Munique em 1942, durante a Segunda Guerra; teve uma infância paupérrima num vilarejo bávaro; aos 16 anos, trabalhou num barco pesqueiro na ilha grega de Creta; aos 19, aventurou-se pelo norte da África e quase morreu no Cairo; aos 23, ganhou uma bolsa para estudar nos Estados Unidos, mas, depois que seu visto expirou, teve de fugir para o México por risco de ser deportado; no país latino, trabalhou como palhaço e se machucou seriamente, fato que o motivou a mudar de ramo e virar contrabandista. Viveu tudo isso antes de completar 25 anos — e só a partir de então viria a parte da biografia que o consagrou: a gloriosa carreira de diretor que, com ousadia e determinação férrea, mudou conceitos no cinema.
No livro de memórias Cada Um por Si e Deus contra Todos, que está saindo no Brasil, Herzog — hoje aos 81 — conta as muitas peripécias de sua vida. Além de diretor de filmes que assombraram os anos 1970 e 1980, como Aguirre, a Cólera dos Deuses e Woyzeck, que ajudaram a moldar a definição de cinema de arte, ele é um escritor calejado. Daí, talvez, venham alguns méritos da obra: não é um livro cronológico e linear, mas uma seleção de passagens de sua atribulada vida, com memórias mais antigas atravessando relatos mais recentes. Ele não comete um pecado comum em autobiografias: o autoelogio. É irônico e crítico de si mesmo. E, apesar do título sugerir uma pessoa individualista, desfaz a impressão ao se mostrar generoso com amigos e colaboradores.
Com 48 filmes e 27 óperas no currículo, Herzog é um dos diretores mais admirados por seus pares, com uma legião de fãs na nata hollywoodiana. Apesar dos muitos convites para fazer o chamado “cinemão”, com orçamentos polpudos e astros à disposição, nunca topou sair da sua trincheira autoral e abrir mão da forma quase artesanal de fazer filmes. No livro, o diretor se define como o “mainstream do alternativo” e revela que quase filmou em Hollywood quando Jack Nicholson se interessou em fazer o protagonista de Fitzcarraldo. Desistiu ao saber que o ator e “a 20th Century Fox queriam rodar o filme no Jardim Botânico de San Diego, com um navio miniatura de plástico”.
O filme de 1982, que lhe rendeu o prêmio de melhor diretor em Cannes, é um tour de force gravado na Amazônia. A obra retrata a derrocada de Brian Fitzgerald (chamado de Fitzcarraldo pelos locais), irlandês que queria construir uma ópera no meio da floresta. Em sua obsessão e loucura, ordena que seu navio de mais 300 toneladas seja transportado por terra de um rio para outro. A cena da transposição da embarcação, ao som de uma ária de Enrico Caruso, é um marco.
Nas filmagens, Herzog teve de lidar com os disparates de seu tresloucado ator-fetiche, o polonês Klaus Kinski. Protagonista de cinco de seus filmes e dono de personalidade mercurial, Kinski era do tipo que brigava com todos, inclusive com ele mesmo. Seus constantes ataques de fúria levaram os indígenas a fazer uma proposta para Herzog: ofereceram-se para matar Kinski. “Recusei educadamente, mas sei que, caso tivesse aceitado, no mesmo instante eles teriam passado à ação”. relembra. “Naquela época, ele era como um demônio.” A relação entre os dois ocupa boa parte do livro. Coincidentemente, moraram na mesma pensão na Munique do pós-guerra. Herzog tinha 13 e Kinski, 26 anos. O então ator já era considerado brilhante, mas endiabrado. Discutia com a plateia no teatro, andava nu pela pensão, dispensava camas e dormia sobre folhas secas. “Como contestador de toda a civilização, ele também se recusava a usar talheres”, lembra o diretor. E, claro, tinha constantes rompantes de ira. “Eu sabia no que estava me metendo quando, quinze anos depois, comecei a trabalhar com ele.” No documentário Meu Melhor Inimigo (1999), Herzog revisita seu convívio com Kinski, morto em 1991.
No set de Fitzcarraldo, um acidente deixou um indígena paraplégico, um trabalhador foi alvejado por uma flecha e outro, picado por uma cobra. A cena do transporte do navio era tão complexa que o diretor teve sua sanidade questionada. O longa é uma síntese do cinema de Herzog, que muitas vezes retratou a vã tentativa humana de vencer a natureza. Por extensão, o livro é o esforço do cineasta selvagem para organizar seu espírito livre e caótico. Pairam dúvidas se obtém êxito. Mas, como literatura, é uma delícia.
Publicado em VEJA de 7 de junho de 2024, edição nº 2896