Houve uma época em que viajar de avião era uma experiência glamorosa. Elegantes comissárias de bordo serviam caviar na primeira classe e champanhe à vontade na econômica. Distribuídos em poltronas espaçosas para todas as classes de bilhetes, passageiros vestiam terno e passageiras usavam salto alto. Os voos pareciam uma grande festa em céu de brigadeiro. Nenhum outro modelo foi tão marcante para a era de ouro da aviação quanto o Boeing 747. Primeira aeronave a jato do mundo com dois andares e dois corredores — era tão grande que recebeu o apelido de Jumbo, uma referência ao famoso elefante que inspirou a Disney —, ela oferecia todos esses mimos, mas suas mordomais iam além. Uma escada em espiral levava os viajantes para o luxuoso lounge no andar superior, onde era possível deleitar-se com concertos de renomados pianistas, jogar carteado ou simplesmente acomodar-se nos sofás, enquanto o avião cruzava oceanos e continentes.
Nos últimos 51 anos, o 747 fez do ato de voar uma aventura prazerosa, reduziu as distâncias entre os países e reinou absoluto como o jato mais importante da história da aviação. Agora isso ficará no passado. Há alguns dias, a Boeing anunciou o fim da fabricação do Jumbo. “O mercado simplesmente não suportará níveis maiores de produção neste momento, e nós não temos o que fazer a não ser nos adaptar à nova realidade”, disse o presidente da empresa, Dave Calhoun.
O Jumbo foi vítima daquilo que o consagrou: o tamanho. De 1969, quando foi lançado, até 2007, ano em que foi superado pelo Airbus A380, o 747 ostentou o título de maior aeronave do mundo, com capacidade para transportar até 500 passageiros, a depender da configuração. Com o desenvolvimento tecnológico, a vantagem virou um problema. Seus quatro motores têm sede insaciável de combustível, enquanto concorrentes menores e mais ágeis podem superar as mesmas distâncias consumindo 20% menos querosene. Outro obstáculo associado à fuselagem colossal diz respeito às restrições para pousos e decolagens. A crescente urbanização fez com que surgissem cidades ricas e abriu novos mercados, mas o 747 não consegue chegar até eles porque os aeroportos não possuem pistas de dimensões suficientes para recebê-lo. Enquanto isso, seus rivais são capazes de levar o mesmo número de passageiros com a mesma autonomia de voo, além de desbravar qualquer tipo de pista. Com o acirramento da competição, o preço das passagens caiu, e ninguém mais parecia ligar para o charme dos velhos tempos. Nesse cenário, era inegável que o Jumbo estava irremediavelmente ficando para trás.
A crise do coronavírus acelerou o declínio da aeronave mais icônica da aviação. Segundo dados da consultoria Cirium, antes da pandemia havia 184 Boeing 747 em operação. Com o cancelamento de voos, apenas 23 permaneceram no ar. A tempestade perfeita levou muitas companhias aéreas a anunciar a aposentadoria definitiva de suas frotas. Há algumas semanas, a inglesa British Airways informou que não voará mais com o modelo, encerrando assim uma parceria de cinco décadas. A australiana Qantas antecipou o fim dos 747. A despedida do último avião da série estava prevista para dezembro, mas o voo derradeiro foi realizado em 22 de julho, sob forte emoção. “É difícil dimensionar o impacto que o 747 teve na história da aviação”, afirmou o presidente da Qantas, Alan Joyce. No Brasil, a Varig foi a única brasileira a voar com o modelo, de 1981 a 1999. Com ele, a empresa consolidou sua operação internacional e se tornou uma das principais parceiras da Boeing no mundo. Segundo a fabricante americana, a última encomenda do 747 será entregue em 2023, para um cliente especial: a Força Aérea dos Estados Unidos, que provavelmente usará a aeronave para viagens do presidente. Até o final, portanto, o 747 manterá a altivez.
Publicado em VEJA de 12 de agosto de 2020, edição nº 2699