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A armadilha da caixa-preta: Bolsonaro mira o BNDES e atira no alvo errado

Presidente troca o dirigente do banco, criticado por não esclarecer os segredos dos empréstimos a Cuba e Venezuela – o problema, porém, não nasceu no banco

Por Machado da Costa
Atualizado em 4 jun 2024, 15h52 - Publicado em 21 jun 2019, 07h00

Joaquim Levy durou pouco mais de cinco meses à frente do BNDES. Solitário, trabalhador, rigoroso e, segundo os agora ex-colegas, muitas vezes desagradável, ele não conseguiu atender às metas que o levariam a cumprir suas principais missões: devolver 100 bilhões de reais ao Tesouro Nacional e abrir a “caixa-preta”, como o presidente Jair Bolsonaro gosta de chamar os contratos feitos durante os governos Lula e Dilma — sobretudo com países alinhados ao PT, como as ditaduras de Cuba e Venezuela.

É verdade que o economista, ministro da Fazenda de Dilma Rousseff, buscou entender os propósitos e as minúcias de todos os grandes acordos realizados nas gestões que o antecederam no banco. Seu perfeccionismo, no entanto, acabou por travar o BNDES, causando a ira do Planalto. “Eu já estou por aqui com o Levy”, disse o presidente Bolsonaro no sábado 15, em uma ameaça clara de demissão. O executivo preferiu encerrar a fritura pública por conta própria e, no dia seguinte, pediu seu desligamento do governo. Para ocupar seu lugar, foi escolhido Gustavo Montezano, indicado pelo secretário especial de Desestatização e Desinvestimento, Salim Mattar, de quem era o braço-direito. Mattar reclamava da lentidão de Levy em vender a participação do banco em empresas como Petrobras, Vale e JBS, e convenceu Bolsonaro a indicar seu pupilo na segunda-feira 17.

Levy falhou na primeira missão por temer o Tribunal de Contas da União, que poderia questioná-lo pela antecipação de recursos ao Tesouro. Como ex-titular da Fazenda da gestão Dilma, ele não queria se arriscar a uma acusação de estar realizando uma “pedalada”. A segunda missão, porém, Levy não tinha mesmo possibilidade de cumprir. A caixa-preta, um arquivo onde estariam guardadas informações que podem elucidar os motivos que levaram o BNDES a fechar contratos nebulosos com ditaduras não só da América Latina como também da África, de fato existe. Mas ela não está no banco: está na Câmara de Comércio Exterior, a Camex.

Miguel Jorge e Guido Mantega
COMBINAÇÃO – Acima, os ex-ministros Miguel Jorge e Guido Mantega, que participaram da decisão de oferecer créditos especiais a ditaduras; abaixo, ata de reunião da Camex que favoreceu os cubanos (Ricardo Marques/Folhapress/.)

Foi durante reuniões do conselho diretor do órgão — presidido entre 2008 e 2010 por Miguel Jorge, então ministro do Desenvolvimento na era Lula, e com participação dos titulares da Fazenda, à época Guido Mantega, e do Planejamento, Paulo Bernardo — que se bateu o martelo quanto às condições superfavoráveis que Cuba, Venezuela, Moçambique e Angola conseguiram em empréstimos do banco. Entretanto, o conjunto das atas das reuniões da Camex — abrigada dentro do atual Ministério da Economia — está sob sigilo; elas só podem ser abertas por decisão judicial. Nem Maria Silvia Bastos Marques nem Paulo Rabello de Castro, que antecederam Levy na presidência do banco, tiveram acesso àqueles papéis. “Eu não estava no BNDES para auditar a Camex. Eu era um banqueiro, não um auditor”, afirma Rabello de Castro. Para deixar claro: Montezano tampouco poderá abrir a tal caixa-preta.

Uma ata da 72ª reunião do Conselho de Ministros da Camex, de maio de 2010, anexada a um inquérito do Ministério Público sobre o assunto, tornada pública em 2015, trata do contrato de empréstimo para que Cuba construísse o Porto de Mariel — alvo maior da fúria do presidente Bolsonaro. Na ocasião, a Camex deliberou sobre um financiamento de 176 milhões de dólares para a segunda etapa da construção do porto e definiu, por exemplo, uma taxa de juros entre 4,5% e 5% ao ano (foi usada a Libor, uma taxa de referência internacional, acrescida de 3,5% ao ano) — a título de comparação, a Selic, naquele momento, estava em 9,5%. Os prazos para pagamento também eram generosos. Na mesma ata, consta que o representante de um órgão coligado à Camex, e que conta com a participação do BNDES, o Comitê de Financiamento e Garantia das Exportações (Cofig), protestou contra as flagrantes irregularidades — ou, no eufemismo escolhido, as “excepcionalidades” — do contrato.

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O Cofig é o órgão responsável por estruturar as garantias de cada empréstimo. Sua secretaria executiva advertiu que a proposta cubana era frágil, contudo quem decidia o que aceitar ou não era o comando da Camex: Miguel Jorge, Guido Mantega e Paulo Bernardo. No melhor estilo “La garantía soy yo”, aceitou-se que o contrato seria honrado por recebíveis gerados pela indústria cubana de tabaco. Cuba sustou o pagamento das parcelas em julho de 2018, e a garantia é impossível de ser executada — afinal, o devedor e o garantidor são a mesma figura, um governo totalitário.

Porto de Mariel
LA GARANTÍA… – Porto de Mariel, a 40 quilômetros de Havana: o governo brasileiro financiou a obra sem exigir seguro (Yamil Lage/AFP)

A Camex faz, até hoje, todos os contratos de financiamento de exportações em coordenação com o BNDES. Todavia, os contratos firmados pelas gestões de Lula e Dilma não nasceram em demandas feitas ao banco, como é comum, e sim diretamente ao Poder Executivo. Por isso o contrato não garantiu o mínimo de segurança ao Tesouro Nacional. Hoje, o governo Bolsonaro está com problemas para conseguir cumprir a regra de ouro — que proíbe o Executivo de endividar-se para pagar despesas correntes. E é exatamente esse um dos motivos pelos quais o Ministério da Economia quer que o BNDES devolva, até o fim de 2019, 100 bilhões de reais — pouco mais de 1% do PIB — ao Tesouro.

Pelo menos nesse aspecto, o novo presidente do banco, Gustavo Montezano, poderá cumprir o que Levy não quis. Há disponível no caixa do BNDES entre 30 bilhões e 40 bilhões de reais, que podem ser transferidos já para o Tesouro Nacional. No entendimento da diretoria do banco, uma conversa com os ministros do TCU afastará qualquer risco jurídico. Com os 26 bilhões de reais entregues por Levy, o total devolvido pelo BNDES poderia chegar a 66 bilhões de reais ainda neste meio de ano. Outra preocupação de Levy, o balanço de pagamentos, é “perfumaria”, nas palavras de um membro do conselho. O BNDES desembolsa tão pouco atualmente que não faria sentido deixar parado o dinheiro no caixa da instituição. Até abril, o último dado disponível, o banco desembolsou 3,2 bilhões de reais, apenas 6% do total despendido em 2018. Dentro do órgão, é consenso que Levy era lento demais e que esse foi o principal motivo para o desgaste com Paulo Guedes. A demora em aprovar empréstimos também incomodava o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, e uma dezena de diretores e conselheiros do BNDES. O motivo declarado por Bolsonaro para forçar a demissão de Levy — a nomeação de um ex-secretário da gestão petista para um cargo de diretoria — foi apenas a gota d’água que fez o copo transbordar.

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A ideia do governo é que Montezano, de 38 anos, consiga transformar o banco em um captador de recursos externos. Levy rechaçou a proposta de ir para fora para angariar recursos destinados à infraestrutura. Os juros dos empréstimos do BNDES, que hoje estão próximos de 7%, poderiam passar de 15% ao ano por causa do mecanismo tributário incidente no spread — a diferença entre a taxa paga pelo consumidor e a da captação. Caso, porém, a nova Previdência retire do banco os recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), não haverá muitas formas de financiar suas operações, uma vez que o Tesouro não tem dinheiro. Há medo dentro do BNDES sobre seu futuro. Para aumentar o clima adverso, algumas informações que chegaram sobre Montezano provocaram inquietação. Seu propalado gosto por baladas, a amizade que mantém com Eduardo e Flávio Bolsonaro e um processo por haver arrombado o próprio prédio não causaram boas impressões. Montezano, entretanto, já foi diretor e sócio do BTG Pactual e agradou a Guedes durante seus poucos meses no governo. Formado em engenharia pelo Instituto Militar, ele é mestre em economia pelo Ibmec, onde seu pai, Roberto Montezano, leciona. Currículo, como se vê, o jovem executivo tem. Resta acompanhar como vai se sair nas missões que Joaquim Levy não conseguiu cumprir.

Publicado em VEJA de 26 de junho de 2019, edição nº 2640

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