Alguns anos depois do apocalipse zumbi de 2009, uma sobrevivente viaja pelas cidades arrasadas e conta aos companheiros uma ideia de negócio que gostaria de ter criado antes que o mundo acabasse: você se conectaria, pediria carona digitalmente a um desconhecido, pagaria pela corrida e daria uma nota pela qualidade do serviço. Os companheiros acham a ideia sem pé nem cabeça. Tirando taxistas, quem ia ter coragem de sair por aí compartilhando um carro com desconhecidos? Pois é. Naquele mundo alternativo do filme Zumbilândia 2, nunca chegou a existir a companhia global Uber Technologies, fundada em 2009 com o nome de UberCab. Já no mundo real, a Uber se tornou um colosso que conecta desconhecidos planeta afora — atualmente, são 150 milhões de usuários, mais de 7 milhões de motoristas e portadores, em mais de 10 000 cidades em setenta países — e transformou essa ideia esquisita num faturamento de 37,3 bilhões de dólares em 2023. E a companhia só chegou à adolescência. Seus planos devem causar impacto mesmo para os que não têm o hábito de “chamar um Uber”.
No Brasil, a empresa vai atrás dos 20% de adultos que nunca usaram nenhum de seus serviços. A principal tática hoje é por meio do serviço Moto — que oferece corridas mais baratas em garupa de motocicleta, o veículo de preferência em bairros pobres e nas zonas rurais. “Para nós, acessibilidade financeira é incrivelmente importante. Queremos que Uber seja acessível para todo mundo”, disse Dara Khosrowshahi, presidente global da empresa desde 2017, a VEJA NEGÓCIOS, durante uma visita recente a São Paulo (leia a entrevista).
O Moto é oferecido em outros países latino-americanos, como México e Bolívia. No Egito e na Índia, os usuários podem pagar barato para usar um Shuttle — um veículo compartilhado por 14 ou mais pessoas, em uma rota calculada sob medida (no Brasil, esse serviço é fretado por empresas). A Uber cresce em vários dos países pobres mais populosos, como Bangladesh, Nigéria e Tanzânia. Isso não significa abandonar os clientes mais ricos e serviços luxuosos (na França, foi lançado o Uber Bubbles, uma viagem com degustação de champanhe). Mas Khosrowshahi é claro ao situar a prestação de serviços populares no topo das prioridades.
A expansão dos negócios ocorre na geografia e também no escopo, nos itens que a companhia aceita transportar e nos serviços que presta. Apesar do recuo do Uber Eats no Brasil em 2023, globalmente a empresa quer se posicionar como transportadora urbana de qualquer produto, não só de refeições. A meta é ser reconhecida como uma entregadora mais rápida que a Amazon.
Além do empenho nos serviços populares, Khosrowshahi destaca outras marcas da sua gestão, iniciada em 2017 — “foco”, “disciplina”, concentração no essencial e atenção aos gastos. Sob o comando do executivo, a Uber vendeu ou fechou unidades que se propunham a desenvolver novas tecnologias dentro da companhia e passou a trabalhar em parcerias. Assim, a empresa acompanha de perto a evolução de veículos elétricos (com Tesla e Kia), autônomos (com Aurora e Waymo) e voadores (com a Joby), sem assumir tantos riscos. Até o momento, está mantida a unidade Freight da Uber, que presta serviços de orientação logística, inclusive para transporte de carga por navios. Não é a fórmula mais sexy do mundo, mas levou a Uber ao primeiro lucro de sua história de quinze anos, alcançando quase 1,9 bilhão de dólares em 2023.
Depois disso, o resultado decepcionou no primeiro trimestre de 2024, com novo prejuízo, mas a perspectiva da companhia se mantém sólida. Suas ações seguem na seleta lista de recomendações de compra do fundo do megainvestidor húngaro-americano George Soros. Justin Post, analista no Bank of America (BofA), escreveu em junho que o negócio da Uber se beneficia da transição para a economia compartilhada, da demanda por serviços que economizem tempo do usuário e da busca das empresas por marketplaces mais eficientes. O BofA também recomenda a compra das ações.
O quadro sugere que a difusão global da empresa e seu impacto nas cidades ainda vão crescer. Com presença tão ampla, governos e a academia em muitos países já se propuseram a medir os efeitos da Uber em diferentes aspectos da vida urbana, como produtividade, poluição, consumo de combustíveis, compra e aluguel de veículos. A Uber já elevou a demanda por motocicletas em Bangladesh e piorou o tráfego em cidades na Índia (essa piora também foi detectada nas áreas urbanas mais densamente habitadas dos Estados Unidos, em estudo da Universidade do Arizona). A Universidade Federal de Pernambuco constatou que a Uber, nas cidades em que atua no Brasil, reduziu fatalidades no trânsito em ao menos 9% e hospitalizações em 16%, principalmente porque homens jovens ganharam uma opção para beber e não precisar dirigir (há resultados similares nos EUA e em outros países). Raul da Mota Silveira Neto, pesquisador de economia urbana e um dos autores da pesquisa, considera os aplicativos uma força ainda subestimada por formuladores de políticas públicas. “A aplicação dessa tecnologia no deslocamento urbano precisa ser mais discutida e mais estudada no Brasil”, diz.
Chegar a esse tamanho e a essa influência foi uma jornada das mais acidentadas. A Uber passou por um pouco de tudo em sua curta vida de quinze anos: chegou em 2015 ao status de startup mais valiosa do mundo; sofreu com um cofundador e CEO de comportamento errático e agressivo, Travis Kalanick, que deixou o cargo em 2017 e o conselho de administração da empresa em 2019; passou por grandes vazamentos de dados, em 2017 e 2022; lidou com ondas de relatos de ataques sexuais de motoristas a passageiras; abrigou uma “cultura de assédio sexual e retaliação”, segundo a EEOC (agência do governo americano contra discriminação no trabalho), e teve de pagar 4,4 milhões de dólares às reclamantes em 2019; precisou alertar investidores a respeito dessa mancha em sua marca ao abrir o capital, no mesmo ano; e foi alvo de protestos violentos, ao longo dos anos, por parte de motoristas de táxi que se consideraram vítimas de concorrência desleal, em países como França, Grécia, Indonésia e México. Na Austrália, em março, concordou em pagar 178 milhões de dólares como compensação a taxistas que perderam receita. Parte desses problemas parece resolvida ou, ao menos, contida.
Num número crescente de cidades, a Uber traz os taxistas para seu lado — permite que eles se cadastrem na plataforma e ganhem uma opção para encontrar passageiros. Isso ocorre em mais de vinte cidades no Brasil, incluindo Rio e São Paulo. Já o estilo de liderança e as medidas adotadas por Khosrowshahi mudaram a companhia por dentro nos últimos anos. A remuneração variável de executivos passou a incluir metas de diversidade e os contratos deixaram de cercear a reação dos funcionários diante de eventual assédio (contratos antigos tentavam forçar a resolução interna desses casos e impedi-los de chegar à Justiça). “Acredito que as partes mais importantes da liderança são transparência, honestidade, (revelar) o que eu sei e o que eu não sei”, disse o CEO. “Isso aparece e permite conexão humana.” Essa visão de como deve ser um bom ambiente de trabalho ajudou a empresa em suas questões internas. Mas não resolve um outro grande obstáculo ainda no caminho do negócio.
A empresa deu ao léxico expressões que mostram sua popularidade e inventividade — “chamar um Uber” ou “tal empresa é o Uber de tal setor”. Mas também gerou, sem querer, uma palavra com significado ruim: “uberização”. O termo está hoje presente em processos, peças legislativas e pesquisas acadêmicas sobre relações trabalhistas, normalmente em contexto negativo. A Uber se apresenta ao mercado como simples mediadora entre interessados, o cliente e o prestador do serviço. E afirma tratar o motorista como um parceiro autônomo, um empreendedor que precisa tomar suas próprias decisões. Em teoria, a empresa tem um argumento sólido. Os motoristas são livres para decidir com qual frequência trabalham na plataforma e em quais horários. No Brasil, 3,6 milhões de pessoas já experimentaram prestar serviço na plataforma e a abandonaram ou a usam para trabalhar menos de uma vez por mês. Segundo uma pesquisa do instituto Cebrap de abril de 2022, apenas 26% dos motoristas haviam largado um emprego anterior para tentar a sorte nos aplicativos. Na prática, porém, há motivos de preocupação.
Os motoristas da Uber correm os mesmos riscos financeiros que outros autônomos, como precisar interromper o trabalho por doença e não contar com remuneração nesse período. E correm riscos adicionais, específicos. Dirigir por aplicativo exige que se tomem rapidamente, ao volante, decisões complexas. O “produto” vendido pelo motorista muda de preço o tempo todo — sem que ele tenha influência sobre isso. Quais corridas valem a pena? Contam aí o valor, a distância até o passageiro, o tráfego no momento, a extensão da corrida, o local de destino, a perspectiva de novas corridas que podem aparecer nos minutos seguintes. O motorista tem acesso por doze segundos a uma tela com os dados da corrida. Khosrowshahi reconhece que a empresa precisa ajudar a simplificar esse processo. Tomar seguidas decisões ruins leva o motorista a perder dinheiro com combustível e manutenção do veículo. Para agravar o quadro, a mesma pesquisa Cebrap revela que 21% dos motoristas da Uber no Brasil não têm ensino médio completo.
A Câmara dos Deputados discute o problema, que inclui, entre outros tópicos, definir uma remuneração mínima, por tempo, por distância percorrida ou ambos; o formato de futuras negociações entre motoristas e plataformas; e uma forma de contribuição previdenciária para a categoria. Silvia Penna, presidente da Uber no Brasil, acredita que havia um bom ponto de partida na forma do Projeto de Lei Complementar 12 de 2024, enviado em março ao Congresso pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Trabalhamos quase um ano dialogando, empresas, motoristas e governo, para chegar àquele projeto de lei. Ter uma regulação federal no Brasil é positivo”, diz a executiva. Leandro Medeiros, presidente do Sindicato de Motoristas de Aplicativo do Estado de São Paulo (Stattesp), também via pontos positivos na proposta, como a obrigação de negociação por acordos coletivos e o reconhecimento formal da categoria. Mas em junho a Câmara passou a discutir um projeto substitutivo, bem mais extenso, que aumenta de 18 para 44 artigos a regulamentação da atividade. Medeiros agora prefere esperar e analisar a nova proposta, antes de opinar. “Causam preocupação o aumento da insegurança jurídica e a inclusão de dispositivos que promovem intervenção direta na operação das plataformas”, comunicou, sobre o substitutivo, a Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia, uma organização de empresas que inclui a Uber.
O presidente Lula ficou tão atento ao assunto que, na reunião da Organização Internacional do Trabalho, em junho, em Genebra, parabenizou o primeiro-ministro da Espanha, Pedro Sánchez, pela regulação adotada por lá em 2023 — embora a normatização tenha provocado polêmica na União Europeia, por ser restritiva demais para os aplicativos. Outros países estão no mesmo processo que o Brasil, com um debate aquecido e cheio de dúvidas.
Enquanto aqui a legislação a respeito será principalmente federal, nos Estados Unidos, municípios e estados mandam. A Uber celebrou a regulação vigente na Califórnia, chamada Proposição 22, aprovada em 2020, que definiu remuneração mínima ao motorista baseada no tempo em que há passageiro dentro do carro. Nicole Moore, presidente do sindicato Rideshare Drivers United, de Los Angeles, critica essa norma e defende uma remuneração mínima baseada no tempo total de trabalho do motorista. Um condado recorreu à Justiça estadual, que deve avaliar até agosto se derruba a lei. “Se a lei for derrubada, vamos insistir para mais lugares terem normas parecidas com as de Nova York”, afirma Nicole. Na maior cidade americana, valem regras difíceis de encontrar em outros lugares: a remuneração mínima inclui o tempo de deslocamento do motorista até o passageiro, ainda com o carro vazio; motoristas têm licença remunerada em caso de doença; os aplicativos precisam abastecer o Departamento de Trabalho da Prefeitura com dados para análise independente, para que a remuneração dos motoristas seja reavaliada anualmente. Para os motoristas, o modelo funciona. Para a Uber, também. Mesmo com todas essas obrigações, Khosrowshahi afirma que a operação em Nova York continua lucrativa. Talvez não seja tão impossível, no fim das contas, encontrar uma equação que funcione para todos.
Publicado em VEJA, junho de 2024, edição VEJA Negócios nº 3