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A encruzilhada econômica da China

Pequim anuncia um pacote de estímulo diante ao consumo doméstico desapontador e de crescentes barreiras às suas exportações

Por Diogo Schelp Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 25 out 2024, 06h00
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  • A China, país que nas últimas décadas nos acostumamos a ver como fábrica do mundo e grande consumidor de commodities, está caminhando para o seu novo normal na economia. No lugar das taxas de crescimento de dois dígitos de alguns anos atrás (veja o gráfico), passará a ter incrementos mais modestos, possivelmente na casa dos 3% ou 4% ao ano — ainda assim superiores à média de muitas nações. Há dez anos ou mais, já estava claro que esse momento chegaria. Nenhum economista pensou que seria fácil, seja para a China, seja para o mundo. Perdura, porém, a esperança que se deposita no país como motor do PIB global, como demonstra o tom de decepção da maioria das análises sobre os efeitos do pacote de estímulo econômico divulgado em fatias pelo governo chinês desde setembro. Do ponto de vista de Pequim, o desafio é manobrar para um pouso suave, de forma a garantir que o país continue se desenvolvendo em níveis sustentáveis, aproximando-se lentamente do topo dos países com renda mais alta, depois de ter tirado a maioria da população da pobreza.

    O governo chinês havia definido uma meta de crescimento de 5% do PIB para este ano, mas os indicadores dos últimos meses não vêm confirmando essa projeção. A produção industrial desacelerou, as exportações enfrentam resistências na Europa e nos Estados Unidos por razões comerciais e políticas, os consumidores chineses relutam em abrir suas carteiras e os investimentos no país perderam força. O resultado é baixo crescimento e inflação próxima de zero na China. O índice de preços ao produtor recuou 2,8% no acumulado de doze meses até setembro — só não há deflação generalizada, ainda, porque os preços de alguns alimentos registraram alta. O problema da deflação é que ela cria um ciclo vicioso em que os consumidores adiam as compras à espera de que os preços caiam, os estoques nas empresas ficam abarrotados, a produção declina, investimentos são suspensos e empregos são ceifados, o que reduz ainda mais o consumo. Ou seja, cria-se recessão.

    Construções interrompidas: em 2020, o governo freou a bolha imobiliária
    Construções interrompidas: em 2020, o governo freou a bolha imobiliária (CFOTO/NurPhoto/AFP)

    O governo reagiu a esse cenário com a divulgação do maior pacote de incentivo ao crescimento desde a pandemia de covid-19. Cortou a taxa de juros, liberou mais recursos para crédito bancário, criou novos incentivos para a compra de imóveis e para a renegociação de hipotecas, acenou com alívio fiscal para governos locais e facilitou as operações de recompra de ações, dando impulso às bolsas de valores — que encerraram a semana seguinte ao primeiro anúncio de estímulo com a maior alta de negociações em dezesseis anos. O ministro das Finanças, Lan Foan, afirmou depois que o governo estava disposto a aumentar bastante a liquidez na economia, mas os recursos injetados nas primeiras fases do pacote, da ordem de 30 bilhões de dólares, ficaram longe dos mais de 280 bilhões de dólares esperados por investidores e analistas.

    Mais do que o tamanho do estímulo, a grande diferença se notará no formato da intervenção estatal. De pouco adianta aumentar a oferta de crédito, por exemplo, se as empresas e os cidadãos não estiverem confiantes para investir e comprar. “A China está, já há alguns anos, tentando mudar o seu modelo de crescimento baseado em exportação para um modelo mais amparado no consumo interno”, diz Marcus Vinícius de Freitas, professor visitante da Universidade de Relações Exteriores da China, em Pequim. A dificuldade de trilhar esse caminho reside principalmente em um traço cultural. Tradicionalmente, os chineses aceitam gastar em educação para os filhos e em imóveis, mas de resto são poupadores inveterados. Eles guardam dinheiro, por exemplo, para emergências médicas e para ter uma aposentadoria mais tranquila.

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    arte China

    Essa tendência se intensifica em cenários de incerteza com a economia e, portanto, com os empregos. Em um primeiro momento, as medidas de estímulo anunciadas pelo governo turbinaram o comércio eletrônico e encorajaram os chineses a viajar mais no feriado nacional prolongado de início de outubro. Mas a população precisa ser incentivada a consumir mais no médio e no longo prazos para que o aquecimento econômico não seja apenas momentâneo.

    As famílias chinesas já tiveram uma experiência ruim nesse sentido em um passado recente, quando se endividaram para comprar residências durante um boom imobiliário incentivado pelo governo, apenas para ver os preços no setor caírem mais à frente, quando as autoridades resolveram colocar um freio no mercado para evitar o estouro da bolha. Entre outros efeitos, isso levou a uma queda nos investimentos em construção civil, o que contribuiu para a desaceleração econômica e para o endividamento dos governos locais, que até então baseavam seus gastos em uma arrecadação sustentada em venda de terrenos para os empreendimentos. Outro fator que derrubou os investimentos em construção é o esgotamento de projetos de infraestrutura: a maior parte daquilo que o país precisava já foi colocada de pé nos últimos anos, quando a China se tornou um imenso canteiro de obras.

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    Chineses em loja: cultura mais voltada para a poupança
    Chineses em loja: cultura mais voltada para a poupança (Stringer/Cnsphoto/Imaginechina/AFP)

    Há mais um desafio doméstico para o crescimento chinês no longo prazo, de natureza demográfica. O país tem, atualmente, um estoque significativo de jovens desempregados que podem ser absorvidos no mercado de trabalho, mas o envelhecimento da população preocupa. Nos próximos dez anos, 300 milhões de chineses vão se aposentar. Até lá, a proporção de cidadãos com mais de 60 anos vai ultrapassar a dos Estados Unidos. O Estado chinês se verá confrontado com as necessidades de melhorar o seu sistema previdenciário e de garantir a mão de obra para o futuro. Esse fenômeno foi agravado pela política de filho único que vigorou durante décadas na China. Atualmente, o governo do presidente Xi Jinping pensa em maneiras de fazer o oposto. Uma das medidas propostas para os pacotes de estímulo ao consumo neste ano é justamente a de fornecer mais auxílio em dinheiro para famílias com mais de um filho.

    Uma alternativa de caminho a seguir para dar sustentação ao crescimento econômico é a da exportação de serviços e produtos de maior valor agregado, com inovação Made in China. Esforços nesse sentido já estão sendo feitos, em grande medida com sucesso, como demonstra a inundação de carros elétricos e de equipamentos para fontes renováveis de energia mundo afora — a preços tão competitivos que a China, de certo modo, tem exportado deflação. Simultaneamente, no entanto, as barreiras aos produtos e serviços chineses em muitos países também aumentou, seja com o argumento de proteger empresas e empregos locais, seja por razões estratégicas. “Em 2011, quando participei de uma reunião ao lado do então presidente Hu Jintao, em Pequim, escutei dele, pela primeira vez, que era preciso rebalancear a economia chinesa e direcioná-la para um novo padrão de crescimento”, diz Otaviano Canuto, ex-vice-presidente do Banco Mundial e membro sênior do Policy Center for the New South. “De fato, as altas taxas de investimento em proporção ao PIB não eram compatíveis com o baixo nível de consumo doméstico, e a equação só fechava com saldos comerciais gigantescos.”

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    Produção de automóveis: pátios cheios e exportação de deflação
    Produção de automóveis: pátios cheios e exportação de deflação (CFOTO/NurPhoto/AFP)

    A encruzilhada da economia chinesa, portanto, não oferece saídas fáceis. Fomentar o crescimento econômico via investimentos sem uma demanda interna ou externa condizente apenas eleva a capacidade ociosa, que já é alta em muitos setores produtivos. Adotar medidas para colocar lenha no consumo doméstico esbarra no instinto poupador das famílias chinesas. Apostar todas as fichas na inovação tecnológica para exportação faz crescer, na outra ponta, a resistência de muitos países preocupados com a concorrência comercial e com a ascensão geopolítica da China. Além disso, o crescimento via exportação tem uma dose de instabilidade, pois depende das variações da conjuntura internacional — que atualmente não é das mais promissoras.

    Muitos economistas defendem que um caminho para incentivar a demanda interna de forma duradoura é reforçar o sistema de proteção social e de serviços públicos, para que os chineses não sintam a necessidade de poupar para o caso de ficarem desempregados ou de precisarem ser atendidos em um bom hospital, por exemplo. Xi Jinping, no entanto, já explicitou no passado que abomina o assistencialismo, sob a máxima de que não se deve dar “comida grátis aos preguiçosos”.

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    A decisão do governo de soltar medidas de estímulo ao aquecimento da economia de forma gradual pode ser uma maneira de testar e modular seus efeitos imediatos, mas fazer a tão antecipada mudança no modelo de crescimento chinês, obtendo um pouso suave nas taxas do PIB, exige reformas mais robustas, que resolvam o desafio estrutural da demanda frente à grande capacidade produtiva do país. Do contrário, a cada fim de ciclo de estímulos o gigante terá nova desaceleração econômica.

    Publicado em VEJA, outubro de 2024, edição VEJA Negócios nº 7

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