Doídos de ler são os trechos da obra O Quinze, da romancista Rachel de Queiroz, que narram a tenebrosa seca vivida pelo sertão nordestino em 1915: “Chegou a desolação da primeira fome. Vinha seca e trágica, surgindo no fundo sujo dos sacos vazios, na descarada nudez das latas raspadas”. Na época, o epicentro do drama descrito na obra ocorreu numa localidade chamada Cedro, então parte da maior fazenda do Ceará. Um ano depois da seca narrada por Rachel, a área foi cortada pela ferrovia que ligava o sertão à capital, Fortaleza, e o lugarejo, já transformado em cidade, se expandiu como polo exportador de grãos e de bovinos. Mais de 100 anos depois, os trens caíram no ostracismo no interior cearense e o município segue pobre, com uma população de 25 000 habitantes. Nos últimos anos, entretanto, a cidadezinha voltou a sonhar com o progresso — e essa esperança passa pelos mesmos trilhos que deram vazão à fase de ouro do povoado. “Somos tão pobres que qualquer atividade que gere 100 ou 200 empregos é suficiente para movimentar nosso comércio e impactar a economia local”, explica o prefeito da cidade, Francisco Nilson Diniz (PDT-CE). Hoje, Cedro está na rota da Ferrovia Transnordestina, uma das maiores obras de infraestrutura atualmente em curso no país e que deve conectar o sertão nordestino ao mar. Mesmo que ainda distante, a prosperidade fica mais próxima a cada quilômetro de trilho reaberto.
Retomadas em setembro do ano passado, depois de ficarem três anos paradas por uma decisão do Tribunal de Contas da União (TCU), as obras da ferrovia têm mudado a vida dos nordestinos. A caminhoneira Jucileide Siqueira Campos passou nove meses desempregada, em decorrência dos fretes minguados na região. No canteiro, próximo à cidade de Juazeiro do Norte, no Ceará, ela atuou na remoção dos pedregulhos implodidos que darão passagem à estrada de ferro. Aos 49 anos, Jucileide comemora novas oportunidades com o entusiasmo de quem está em início de carreira. “Dirigir caminhão está no sangue da minha família — meu pai também fazia isso. E, graças a essa obra, consegui comprar um carro e ajeitar minha vida”, diz, emocionada.
Num esforço hercúleo, a Ferrovia Transnordestina teve suas obras retomadas no fim do ano passado com o objetivo de ligar as áreas dedicadas à mineração e à agropecuária nos rincões do Ceará, do Piauí e de Pernambuco aos portos de Pecém (CE) e Suape (PE). São 1 753 quilômetros de brita, dormentes e trilhos assentados em áreas abertas a dinamite e golpes de máquinas gigantescas no terreno pedregoso e ressequido (a reportagem de VEJA testemunhou o dia a dia desses trabalhadores e a magnitude do trabalho). Desses, 600 quilômetros já foram entregues, entre o interior do Piauí e o Ceará. Uma vez concluída em meio ao agreste, a estrada de ferro escoará 30 milhões de toneladas de carga — o que pode tornar a região um importante polo exportador de frutas e grãos.
Se o desafio de engenharia é grande, o custo é proporcional: 13 bilhões de reais. O problema é que, apesar de todos os recursos aplicados desde 1998, ainda faltam 6,8 bilhões de reais para a conclusão, e a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) não está contente com o andamento das obras. Os atrasos e os estouros de orçamento levaram a ANTT a ameaçar o rompimento do contrato de concessão da Transnordestina Logística (TLSA), uma subsidiária da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), responsável pela construção e operação do projeto. A agência exige que a concessionária apresente novos orçamentos para o término da empreitada, inicialmente estimada em 6 bilhões de reais. As obras são na maior parte financiadas pelo BNDES e pelo Fundo de Desenvolvimento do Nordeste. Em 11 de março, a ANTT pediu à União a caducidade do contrato. A TLSA, segundo seu presidente, Jorge Mello, negocia sua permanência. A questão é que, uma vez parada, a obra implicará a demissão imediata de 1 200 pessoas, em uma região de empregos escassos, e o adiamento indefinido no cronograma de conclusão, previsto para 2027.
Poucos grandes projetos estão em andamento atualmente no Brasil. Além da Transnordestina, há duas ferrovias a ser retomadas ou construídas. A Norte-Sul tem prevista uma nova etapa de obras, com cerca de 3 000 quilômetros, sendo que os extremos Sul e Norte ainda não foram licitados. A outra empreitada de porte é a Ferrogrão, de 933 quilômetros, entre Mato Grosso e Pará. Esta ainda está em consulta pública. Depois de três anos de crescimento pífio após uma recessão, as deficiências em infraestrutura são crônicas. E os novos entraves para a economia evocados pela pandemia de coronavírus cobram um pensamento estratégico de longo prazo. Obras em infraestrutura, cujos investimentos do governo federal ainda são preponderantes devido à magnitude dos projetos, tornam-se cruciais para que o país se desenvolva. E, com o peso das commodities na economia, esse caminho passa pelo transporte ferroviário, muito mais eficiente e competitivo para esses produtos.
A renovação e ampliação da malha ferroviária brasileira, com a construção de terminais modais conectados ao sistema, é um passo estratégico para o país. No passado, o alto custo de manutenção aliado à opção pelo transporte rodoviário levou ao sucateamento da estrutura que existia e abortou novos projetos no setor. Hoje, qualquer investimento nessa área é altíssimo e demora para gerar receitas. Isso não torna as ferrovias um mau negócio. A maior empresa do setor, a Rumo, do grupo Cosan, teve crescimento de 6% no volume de carga em 2019 em relação a 2018 e lucro de 800 milhões de reais, três vezes mais que o obtido no ano anterior. O dilema atual está em estruturar um modelo capaz de estimular o setor privado a assumir a construção e operação de novas linhas férreas. O governo mais atrapalha do que ajuda porque, além de não colocar dinheiro, provoca insegurança jurídica. “Há um excesso de regulamentação que engessa a atuação privada e compromete a competitividade das operações”, diz Cláudio Frischtak, da consultoria Inter.B. Pois, enquanto isso não avança, o país perde oportunidades de incrementar suas exportações, e cidades como Cedro correm o risco de ficar estagnadas para sempre.
Publicado em VEJA de 25 de março de 2020, edição nº 2679