‘A privatização pode nos tornar mais ágeis’, diz presidente da Cemig
Reynaldo Passanezi Filho explica de que forma a mudança no modelo de governança da companhia ajudará enfrentar a concorrência no setor

O setor elétrico brasileiro vive sua maior transformação em décadas, marcada pelo avanço das fontes renováveis e pela abertura do mercado livre — que, a partir de dezembro de 2027, permitirá que todos os consumidores escolham de quem querem comprar eletricidade. Entre as empresas que estão se preparando para essas mudanças está a Cemig, estatal de economia mista que atua na geração, transmissão, distribuição e comercialização de energia elétrica em Minas Gerais. Sob o comando do economista Reynaldo Passanezi Filho desde 2020, a companhia mineira tem um plano ambicioso de investimentos da ordem de 59 bilhões de reais em dez anos, para modernizar a infraestrutura elétrica e se adaptar aos novos tempos do setor. Em meio a esse esforço, a Assembleia Legislativa do estado debate a proposta do governo de Minas Gerais para privatizar a empresa. “A decisão cabe ao governo e ao Legislativo, mas, do ponto de vista da gestão, essa mudança traria agilidade empresarial e garantiria o controle de duas usinas hidrelétricas”, disse Passanezi à VEJA NEGÓCIOS na entrevista a seguir.
Como o senhor avalia a proposta de privatização da Cemig do ponto de vista da gestão empresarial? Essa é uma decisão que cabe ao governo do estado e à Assembleia Legislativa, onde o tema está sendo discutido. Posso falar da lógica da Cemig. Temos no horizonte o desafio do mercado livre de energia, em que precisaremos competir com empresas privadas. No modelo de governança atual, teríamos que fazer isso obedecendo às regras de uma empresa de economia mista, que são diferentes daquelas do restante do mercado. Ter maior agilidade de gestão pode ser um fator muito importante de competitividade.
Há outras vantagens? Sim. Atualmente, mais de 90% da geração de energia é feita pelo setor privado. E o grande desafio em um mercado livre é, justamente, a oferta de energia. A Cemig possui, em Minas Gerais, duas usinas hidrelétricas, Emborcação e Nova Ponte, com 1,7 gigawatt de capacidade, cujas concessões estão para vencer nos próximos dois anos. Uma eventual mudança para corporação, com perda do controle da empresa pelo estado, permitiria a renovação dessas concessões por mais trinta anos. Isso significa uma grande quantidade de energia elétrica que continuaria disponível para a Cemig comercializar.
Qual é o modelo de privatização que está sendo cogitado? O modelo permite melhorar os níveis de governança. O que o governo de Minas propõe para transformar a Cemig em corporação não é vender participações acionárias. Hoje, o estado tem 51% das ações ordinárias e nenhuma ação preferencial, sem direito a voto. Com a mudança, todas as ações preferenciais seriam convertidas em ordinárias. Como resultado, o estado passaria a ter 17% do capital total da companhia. Continuaria sendo o maior acionista, mas não mais o controlador. Esse modelo permitiria a renovação das concessões e daria mais agilidade empresarial.
“Todo o investimento que fazemos é em Minas. Expansão fora do estado está fora de cogitação”
De que forma a Cemig já está se preparando para a abertura do mercado livre de energia para consumidores de baixa tensão? Estamos partindo de uma posição muito boa, pois já somos líderes em comercialização no mercado livre de energia em Minas Gerais, inclusive para o setor varejista. Também somos líderes em geração distribuída (usinas de fontes renováveis que fornecem energia para a Cemig). O que temos feito é investir muito em tecnologia, porque é aí que está a grande transformação. Por exemplo, hoje uma empresa varejista consegue contratar energia pelo mercado livre diretamente no site da companhia. A estrutura já é muito automatizada. A mesma coisa vale para a geração distribuída. O nosso grande desafio ainda é ter mais energia no momento em que o mercado abrir, pois atualmente a nossa capacidade de comercialização já é superior à oferta. Ou seja, vamos precisar de contratos longos para comprar energia de terceiros.
Que tipo de inovação virá com a expansão do mercado livre? Essa exigência acontecerá principalmente no atendimento ao consumidor, para que ele possa comprar a energia com um clique. Do ponto de vista da distribuição ou da rede, o fundamental é ter um centro de operação capaz de fazer a integração de todo o sistema. Já iniciamos o processo de implantação de uma nova plataforma de gestão de redes, que aumentará a automatização da operação e do controle da distribuição. Isso vai facilitar muito na hora em que o mercado for livre e estivermos comercializando a energia de terceiros.
O Brasil tem uma sobreoferta de energia elétrica, mas uma conta de luz cada vez mais cara. Como resolver esse paradoxo? A tarifa alta é resultado de uma série de políticas públicas para incentivar determinadas fontes de energia que foram sendo incorporadas à CDE (Conta de Desenvolvimento Energético), ou seja, subsídios cobrados na conta de luz. Isso inclui estímulos para a energia eólica e para a isenção de uso das linhas de transmissão em determinadas regiões, entre outras. Nos últimos anos, a CDE cresceu muito acima de qualquer outro componente da tarifa. O que menos aumentou foi a remuneração do serviço de distribuição. Uma forma de reduzir o impacto disso é estabelecer um teto para o peso da CDE na tarifa.
O que mais precisa mudar? Há outro tema que não entra na CDE e que precisa ser discutido: os subsídios à geração distribuída. Quando se fala na microgeração distribuída (residências com painéis solares), por exemplo, o que se tem são consumidores com capacidade de gerar energia sem qualquer risco, enquanto outros estão pagando por isso. Eles também saem do mercado regulado, fazendo com que os outros custos, inclusive a CDE, sejam divididos por um número menor de consumidores. No caso da Cemig, a tarifa já é 13% mais cara em virtude da diminuição do número de consumidores atendidos no mercado regulado (e que só têm a opção de comprar eletricidade da distribuidora local), por causa da migração para a geração distribuída. Eis a injustiça tarifária: pessoas com maior poder de renda têm mais capacidade de migrar para a geração distribuída e se beneficiam dessas vantagens. A energia solar hoje é uma tecnologia madura, já não precisa receber subsídios.
A Cemig tem um plano de investimento de 59 bilhões de reais ao longo de dez anos. Qual é a estratégia por trás desses aportes? Estamos realizando o maior programa de investimentos da história da Cemig. A empresa vinha de um período até 2018 investindo menos do que sua depreciação (perda de valor dos ativos). Naquele ano, investimos 954 milhões de reais. No ano passado, investimos 5,7 bilhões e, até junho deste ano, em doze meses, investimos 6 bilhões de reais, um crescimento de quase sete vezes. Antes, representávamos 3,8% do total de investimento das empresas elétricas listadas em bolsa e aumentamos a fatia para 9%. A estratégia foi fazer uma reestruturação da empresa, começando por colocá-la dentro dos parâmetros de eficiência e recuperando caixa.
“Em nosso planejamento, 100% dos municípios terão alimentação dupla, alguns com baterias”
Como isso foi feito? Fizemos desinvestimentos em áreas que consumiam muito capital. Vendemos nossas participações na Light, na Renova e na usina Santo Antônio. Com os recursos alienados, passamos a ter caixa para o investimento necessário. Quando cheguei, tínhamos demanda reprimida superior a 15%, referentes a pedidos de conexão não atendidos, porque investíamos menos que a depreciação. O objetivo é trazer a Cemig de volta como indutora do desenvolvimento do estado. Todo o investimento que fazemos é em Minas. Dos 59 bilhões de reais de investimentos previstos, 36,9 bilhões são para distribuição de eletricidade, 5,7 bilhões para transmissão e 2,5 bilhões para gás natural. Expansão fora de Minas está fora de cogitação.
Qual é a grande aposta da Cemig para a transição energética? Hoje, o maior tema de futuro é o armazenamento de energia. Vamos inaugurar a primeira microrrede integrada do Brasil em Serra da Saudade, o menor município do estado, onde colocamos uma planta solar e uma bateria, que tem capacidade de abastecer o município por 48 horas em caso de falta de energia. Com isso, Serra da Saudade passa a ter duas fontes de alimentação: a principal e a bateria. Como a Cemig tem 774 municípios na área de concessão, tínhamos muitos sem dupla alimentação — se falhasse uma fonte, não havia contingência. Hoje, no nosso planejamento estratégico, 100% dos municípios terão dupla alimentação, alguns deles por meio de baterias, como a Serra da Saudade. São situações em que investir em armazenamento é mais barato do que ligar uma nova rede.
As baterias podem evitar desperdício de energia de fontes renováveis também? Sim. Vamos testar as baterias na geração distribuída. Como a rede para geração solar só funciona parte do dia, mas não à noite, podemos usar o sistema de armazenamento para o período noturno. Esse é o tema em que mais devemos investir. É muito bom para a Cemig e para o Brasil. Temos que pensar grande como país. Usinas hidrelétricas reversíveis (capazes de bombear água para o reservatório para reutilizá-la) e armazenamento de energia de larga escala são fundamentais. As duas palavras da moda hoje no setor elétrico são rede e armazenamento de energia.
Publicado em VEJA, setembro de 2025, edição VEJA Negócios nº 18