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A ‘vingança dos nerds’ que pode pôr em risco o sistema financeiro

Movimento orquestrado nas redes sociais por pequenos investidores faz disparar valor das ações de empresa americana

Por Paula Pacheco
Atualizado em 4 jun 2024, 13h53 - Publicado em 5 fev 2021, 06h00

Não é preciso ser nerd para gostar de videogames, filmes de ficção científica e ciências exatas. Mas se, além de curtir tudo isso, a pessoa tiver o hábito de discutir sempre o mesmo tema e fazer planos mirabolantes em fóruns de redes sociais como Reddit, é bem possível que ela seja mesmo um. O termo nerd surgiu nos Estados Unidos nos anos 1950 e ganhou o mundo nas comédias juvenis de cinema dos anos 1980. E foi justamente na terra do Tio Sam que alguns nerds travestidos de “sardinhas” — pequenos investidores da bolsa de valores que eventualmente formam cardumes —, reunidos no fórum Reddit/WallStreetBets (apostas de Wall Street, o centro financeiro do mundo), arregimentaram centenas de milhares de novos assinantes e combinaram a compra em grande volume das ações da GameStop, varejista americana de games com forte presença em lojas físicas, e que vinha sofrendo perdas por causa do avanço dos concorrentes do comércio on-line, especialmente durante a pandemia.

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EM NOVA YORK - Exagero: manifestante fala em “nova revolução” – (John Lamparski/Sipa USA/Fotoarena)

Por causa dessas condições adversas, grandes investidores, como os fundos de investimento, apostavam na queda do valor da GameStop operando “vendidos”, segundo o jargão financeiro. Para ficar vendido, é preciso “alugar” as ações e vendê-las pelo preço do momento, na expectativa de que elas fiquem mais baratas quando for preciso recomprá-las para devolver ao dono. O ganho vem com a queda do valor da ação, pois o investidor embolsa a diferença. Vale lembrar que esse é um dos muitos mecanismos que existem para operar na bolsa e, em princípio, é totalmente legal.

Os nerds que atraíram as sardinhas, formando um gigantesco cardume para enfrentar os tubarões do mercado, tiveram a seguinte ideia: com a compra em massa de ações da GameStop, os papéis ganhariam valor e quem estivesse apostando na desvalorização teria um tremendo problema nas mãos. O movimento tem o nome de short squeeze, que ocorre quando investidores que estão vendidos (short) são espremidos (squeeze) por causa de uma pressão compradora. Assim, quando percebem que as ações estão subindo, os fundos são forçados a recomprar o que venderam para não ter de pagar aos donos das ações a diferença entre o valor menor na tomada do papel e o valor maior na devolução dele. O movimento de reação, como um efeito dominó, impulsiona ainda mais o preço do ativo. A estratégia dos nerds deu tão certo que as ações da Game­Stop disparam 8 000% em seis meses, acumulando alta de 1 744% só em janeiro. Os fundos de investimento, que apostavam na queda de preço, tiveram de devolver o papel ao dono original a um preço muito mais alto. Ou seja, foram obrigados a injetar dinheiro para conseguir se desfazer dos contratos e conter o que se transformaria em mais perdas.

Arte GameStop

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A história bem-sucedida animou alguns pequenos investidores também no Brasil, que se juntaram no Telegram para tentar o mesmo movimento em direção às ações da resseguradora IRB Brasil. O grupo, que começou sob o nome de Short Squeeze IRB, posteriormente rebatizado pelos organizadores anônimos de CPFs do IRB, contava até o dia 3 com cerca de 47 200 participantes, que trocam mensagens fazendo ataques aos fundos de investimento, à Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que fiscaliza o mercado de capitais, e à bolsa de valores. O objetivo era estimular a guerra aos tubarões por meio da compra em massa dos papéis do IRB. Em 28 de janeiro, as ações abriram em forte alta, terminando o pregão com uma valorização de 17,8%.

O movimento atípico disparou o sinal de alerta na CVM, que divulgou uma nota, advertindo que o short squeeze pode configurar crime: “A atuação com o objetivo deliberado de influir no regular funcionamento do mercado pode caracterizar ilícitos administrativos e penais”. Não se sabe, no entanto, se a nota surtiu algum efeito. No Instagram, o grupo ainda posta uma montagem que mostra um cardume de sardinhas em formato de peixe grande engolindo o tubarão: “No dia que o povo souber o significado dessa imagem, a festa acaba”.

IRB - Cópia mal-sucedida: no Brasil, os nerds tentaram turbinar o preço dos papéis da resseguradora, mas a iniciativa não deu resultados. O sistema brasileiro tem proteção mais segura -
IRB – Cópia mal-sucedida: no Brasil, os nerds tentaram turbinar o preço dos papéis da resseguradora, mas a iniciativa não deu resultados. O sistema brasileiro tem proteção mais segura – (//Divulgação)
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A articulação virtual do investidor pessoa física na internet deixa de fato espaço para manipulação, fazendo com que pequenos investidores, interessados apenas em se informar, acabem dando ouvidos a conselhos sem embasamento, sob o risco de se tornarem massa de manobra de quem quer ganhar dinheiro fácil ou atacar alguma empresa ou instituição. A manipulação coordenada por meio de redes sociais, segundo a maioria dos especialistas da área, pode de fato configurar crime e levar a processos de pedido de reparação. Crime ou não, o fato é que a bolsa brasileira é mais protegida, pois apenas 20% das ações de uma empresa podem ser operadas na posição vendida. Essa característica, por si só, já afastaria o risco de prejuízos bilionários.

Preocupada com a possibilidade de que a bolsa brasileira, que tem regulamentação mais rígida que a americana, seja de alguma forma abalada por novas operações de short squeeze, a CVM pode buscar suporte legal via Ministério Público Federal e, como órgão regulador, até mesmo infiltrar espiões no Telegram para monitorar troca de mensagens e investigar indícios de crime. Segundo Raphael Figueredo, sócio da casa de análise financeiras Eleven Financial Research, a reação no Brasil foi adequada: “A CVM acertou no timing. Quando ia começar a pegar fogo, a comissão jogou água imediatamente”. O analista alerta, no entanto, para o risco de um efeito cascata do caso GameStop. Se acontecerem muitos movimentos de short squeeze e os fundos tiverem de tirar recursos de outros ativos para cobrir prejuízos, isso poria em risco não só os tubarões, mas também as pessoas físicas.

Bolsa de valores -
PAINEL DE COTAÇÕES – Perigo à vista: manipular o preço de ações é crime e pode gerar prejuízos. Ao contrário do que muitos pensam, o mercado de capitais não é um cassino onde tudo é permitido – (Cris Faga/Getty Images)
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É sempre salutar lembrar que décadas de juros baixos nos Estados Unidos fizeram com que 70% da população migrasse de investimentos de renda fixa, como poupança, para a renda variável, em especial a bolsa de valores, e uma boa parte desse contingente é de aposentados. Um stress geral da bolsa poderia levar a perdas incalculáveis, já que afetaria o mercado de juros, de moedas e de outros títulos. O caso da GameStop e o do IRB chamam atenção para a influência que as redes sociais, agindo de forma coordenada, podem ter no mercado financeiro, com o potencial de provocar grandes prejuízos de um lado e ganhos igualmente robustos de outro — que não são a base do real desempenho das empresas em suas áreas de atuação.

Ao contrário do que alguns desavisados podem acreditar, o mercado de capitais não é um cassino. Ações de companhias sólidas e com bom horizonte de crescimento tendem a se valorizar com o tempo e costumam pagar dividendos justos a seus acionistas. As casas de análise também fazem recomendações sustentadas por estudos, e não chutes. “Se um analista faz uma recomendação de compra ou venda de ações, é porque avaliou muito os números da empresa”, diz André Perfeito, economista da Necton. Em tempos de juros reais negativos, o Brasil precisará oferecer cada vez mais opções para que a população faça uma poupança segura ao longo da vida. Seja nerd, sardinha ou investidor individual comum, todos deveriam levar isso em consideração, sob o risco de a vingança se voltar contra quem a planejou.

Publicado em VEJA de 10 de fevereiro de 2021, edição nº 2724

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