Trump e as “mortes por desespero”: Haverá Dor
O que ocorre nos Estados Unidos é um alerta para o Brasil
Em 2023, morreram mais de 112 mil americanos de overdose – mais do que todos os soldados do país mortos em toda a Guerra do Vietnã. A diferença? No conflito, eles sabiam que estavam em guerra. Essa guerra invisível tem nome: “mortes por desespero”. O Prêmio Nobel em Economia (2015) Angus Deaton e sua parceira Anne Case a documentaram. O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, a transformou em poder político. E o Brasil – preso entre o sonho do Sul Global e a realidade da nova Guerra Fria, navegando entre mundos que não existem mais – está prestes a importar tanto o desespero quanto o político que virá explorá-lo.
Revisitando o trabalho seminal de Deaton e Case, Mortes por Desespero e o Futuro do Capitalismo (2020), fica claro por que tantas análises sobre Trump permanecem presas em caricaturas simplistas. Os pesquisadores de Princeton descobriram algo devastador: americanos brancos de meia-idade sem diploma universitário estavam se matando em números crescentes – vítimas de suicídio, overdose e cirrose. Não por pobreza – o cidadão médio americano continua entre os 5% mais ricos do mundo. Mas por humilhação.
Um trabalhador industrial que em 1979 ganhava o equivalente a US$ 70 mil anuais hoje recebe US$ 45 mil. Seus filhos viverão pior. A promessa americana virou mentira.
As Quatro Destruições da América
Deaton e Case identificaram quatro destruições simultâneas:
- Econômica – Não apenas empregos perdidos, mas dignidade destruída. De “aristocracia do trabalho” para “lixo branco” em uma geração.
- Social – Os sindicatos caíram de 35% para 6% da força de trabalho. A participação religiosa despencou, os divórcios explodiram, as instituições que davam identidade evaporaram.
- Sanitária – A Purdue Pharma faturou US$ 35 bilhões transformando dor em dependência. A medicina americana passou a viciar em vez de curar.
- Existencial – O colapso da narrativa “trabalhe duro e seus filhos viverão melhor”. Sem ela, só resta o vazio.
Trump: O Profeta do Desespero
Trump não causou esse desespero. Mas foi o único que soube transformá-lo em força política. Não prometeu cura, prometeu sentido. Não ofereceu prosperidade imediata, mas luta. Tarifas, guerra comercial, reindustrialização – tudo significa sacrifício. Por que milhões aceitam? Porque, após décadas de guerras inúteis e fábricas indo para a China enquanto economistas celebravam o “livre comércio”, alguém disse: “seu sacrifício terá significado desta vez”.
Para uma população cansada de políticos dizendo que “tudo vai bem”, ouvir que tudo está terrível soou como honestidade revolucionária.
A Matemática Implacável do Declínio
A dívida dos Estados Unidos chega a US$ 34 trilhões, 120% do PIB. Juros anuais já beiram US$ 1 trilhão – mais que o orçamento militar. O dólar segue sendo 60% das reservas globais, mas era 70% em 2000. A China cresce. O BRICS+ já representa 35% do PIB mundial.
Trump entende o que seus críticos fingem não ver: os EUA têm no máximo 20 anos para se reestruturar antes que a reestruturação seja imposta por Pequim. Não é ideologia – é matemática.
Cada ano que passa, a janela se fecha um pouco mais. A China já é a maior economia em paridade de poder de compra, é o maior parceiro comercial de mais países que os EUA, controla cadeias críticas, domina minerais raros, forma quase dez vezes mais engenheiros. A questão não é se ultrapassará os EUA, mas quando.
O Xadrez Geopolítico
O cenário global mostra a estratégia em ação. Enquanto críticos falam em “fim da ordem liberal”:
- A Europa, após décadas de dependência, aumentou gastos de defesa.
- O Japão reinterpretou sua constituição pacifista e dobrou o orçamento militar.
- O México coopera como nunca na fronteira.
- A Índia, dias após seu premier posar ao lado de Xi Jinping, assina acordos bilaterais com Washington.
Trump não está isolando os EUA. Está cobrando o preço real da proteção enquanto ainda pode. É cálculo estratégico – cobrar enquanto tem poder de cobrar.
As Falhas Fatais da Estratégia
Como reconstruir uma base industrial se a força de trabalho sucumbe ao fentanil? Em 2023, a droga matou americanos mais que Vietnã e Iraque juntos. É guerra química: precursores chineses, cartéis mexicanos, consumidores americanos. Não se vence guerra assim apenas com reabilitação – mas cortando linhas de suprimento.
Também não haverá crescimento sustentável sem educação. A China forma 4,7 milhões de engenheiros por ano; os Estados Unidos, 500 mil. A matemática não mente.
Além disso, como mostram Deaton e Case, prosperidade não basta se não houver pertencimento. Ressentimento mobiliza, mas não reconstrói laços comunitários. Raiva compartilhada não é o mesmo que propósito comum.
E o Brasil?
Estamos importando as causas do desespero: desindustrialização, precarização e culto ao “empreendedorismo” que mascara fragilidade. Operários do ABC, caminhoneiros, juventude periférica – todos a uma crise de distância de suas próprias mortes por desespero.
A diferença é cruel: aqui não houve sequer um passado dourado. Pulamos da promessa para a desilusão. E não teremos 20 anos para reagir. Talvez cinco.
Sangue e Sobrevivência
O cinema já deu pistas. Em Sangue Negro (2007), o petróleo construiu a América moderna com traição e violência. Hoje, o sacrifício não é expansão, mas sobrevivência. A diferença é que há cálculo e estratégia por trás da dor – e é isso que Trump oferece: um sentido para o sofrimento.
A escolha é dura: administrar um declínio inevitável ou arriscar uma guerra com chance de vitória. Para milhões já sem esperança, morrer lutando é mais digno do que morrer deitado.
O Brasil enfrentará dilema semelhante – mas sem dólar como reserva, sem arsenal nuclear, sem big tech. Apenas a escolha crua: adaptar-se ou perecer.
Conclusão: Admitindo o Inadmissível
Haverá dor. A questão é se ela construirá algo ou apenas doerá até o fim. Ignorar o que Trump representa – mesmo que ele falhe – é garantir que algo pior surgirá.
Trump não é a doença. É o sintoma de um mundo onde as velhas mentiras morreram e as novas verdades são duras demais para admitir. A diferença é que, atrás de sua retórica brutal, existe cálculo estratégico. Ele fala para pessoas que não têm mais nada a perder – e oferece a elas o que a elite parou de oferecer: propósito.
O Brasil ainda tem algo a perder. Mas a janela se fecha rapidamente. E a escolha que parece distante pode estar à porta.
Para se aprofundar
📚 Livros Essenciais
Deaths of Despair and the Future of Capitalism – Anne Case e Angus Deaton (2020)
◦ Em português: Mortes por Desespero e o Futuro do Capitalismo
O trabalho seminal que mudou nossa compreensão da América
Hillbilly Elegy – J.D. Vance (2016)
◦ Em português: Era Uma Vez um Sonho
Memórias do novo vice-presidente sobre a América esquecida
The Unwinding – George Packer (2013)
A desintegração da América contada através de vidas reais
📄 Artigos Acadêmicos Fundamentais
Rising morbidity and mortality in midlife among white non-Hispanic Americans in the 21st century (PNAS, 2015)
O estudo original de Case e Deaton que chocou o mundo
Mortality and Morbidity in the 21st Century (Brookings Papers, 2017)
Expansão do estudo com dados atualizados
📺 Séries e Documentários
Dopesick (Disney+/Star+, 2021)
Com Michael Keaton. A história real de como a Purdue Pharma criou a epidemia de opioides
Hillbilly (Netflix, 2020)
Documentário complementar ao livro de J.D. Vance
🎬 Filmes
Sangue Negro (There Will Be Blood, 2007)
Com Daniel Day-Lewis. A construção violenta da América moderna
Nomadland (2020)
Com Frances McDormand. O retrato da dignidade em meio ao colapso
🎤 Palestras e Entrevistas
Angus Deaton – Deaths of Despair (Princeton University)
Palestra completa explicando a pesquisa
Anne Case – TED Talk on Deaths of Despair
Versão acessível de 15 minutos
Walter Maciel é presidente da AZ Quest
Os textos dos colunistas não refletem necessariamente as opiniões de VEJA NEGÓCIOS
Publicado em VEJA, setembro de 2025, edição VEJA Negócios nº 18







