Atingida em cheio pela pandemia de Covid-19, a aviação comercial brasileira se transformou em exemplo dramático do baque provocado pelo coronavírus nas atividades econômicas. Em abril de 2020, no auge da crise sanitária, o número de decolagens domésticas nos aeroportos de todo país despencou para o equivalente a 6,8% da malha aérea pré-pandemia. Assim que a situação começou a dar sinais de melhora, entre o fim de 2020 e o início de 2021, as decolagens chegaram rapidamente a 69% da época pré-Covid 19. Isso apenas para enfrentar uma nova queda, para 35%, três meses depois. Em meio a essa montanha-russa, o tráfego aéreo fechou dezembro com aproximadamente 85% das decolagens pré-pandemia e, finalmente, deve ficar entre animadores 90% e 100% em maio. Mesmo com essa aparente normalização, alcançada graças à vacinação massiva, ventos fortes continuam a soprar no setor.
Segunda maior companhia aérea do país, a Gol realizou nos últimos dias uma intensa movimentação que promete mudar a correlação de forças no céu. No dia 11, a empresa anunciou a união com a colombiana Avianca para formar o Abra Group Limited, holding com sede em Londres que dará origem ao maior grupo aéreo da América Latina, com 300 aeronaves e receita de 7 bilhões de dólares anuais. Apesar da união, as empresas permanecerão funcionando de forma independente, com as próprias marcas e executivos. Uma semana depois, a Gol comunicou a troca de seu presidente, o executivo Paulo Kakinoff, que ocupava o cargo havia dez anos. Ele segue para o conselho de administração e será substituído por Celso Ferrer, que estava no posto de executivo chefe de operações da companhia. “A fusão tem mais um caráter de complementaridade do que de escala. É basicamente uma operação que visa a ampliar receitas para ambas as empresas por meio de novas rotas e vendas cruzadas”, explica André Castellini, especialista no setor aéreo e sócio da consultoria Bain & Company.
Apesar do nome familiar aos brasileiros, a parceira da Gol não tem conexão com a Avianca que realizava voos domésticos no Brasil e que quebrou em 2019. A operação nacional, pertencente ao empresário Germán Efromovich, usava a marca da colombiana, da qual seu proprietário também era acionista, mas tinha identidade jurídica distinta. Na configuração atual, a empresa é controlada pelo empresário salvadorenho radicado nos Estados Unidos Roberto Kriete. Na nova holding, Kriete ocupará a presidência do conselho de administração, enquanto Constantino de Oliveira Júnior, da família controladora da Gol e presidente da empresa de 2001 até 2012, terá o cargo de CEO. Em paralelo ao anúncio da criação da nova companhia, foi divulgado que um grupo de investidores está disposto a aportar 350 milhões de dólares no negócio, o que ajudaria a aumentar a liquidez das duas parceiras. “É um movimento positivo, mas estamos falando de um acordo de sobrevivência entre empresas que enfrentam crises, uma que saiu de uma recuperação judicial e outra que contabiliza prejuízo gigantesco decorrente da pandemia”, aponta Salvatore Milanese, sócio-diretor da consultoria Pantalica Partners. Desde a chegada do coronavírus ao Brasil, a Gol perdeu 60% de seu valor de mercado e acumula uma dívida líquida ajustada de 22 bilhões de reais no fim de março de 2022 — um crescimento de 61,3% em relação ao mesmo período de 2021.
Se a herança maldita da pandemia leva os analistas à ponderação ao tratar do negócio entre Gol e Avianca, a movimentação das duas empresas lança uma sombra sobre a concorrência — em particular sobre a Latam, atualmente a maior do Brasil e também da América Latina. Em recuperação judicial nos Estados Unidos, a companhia aérea chileno-brasileira registrou aumento de receita com a demanda aquecida, mas teve prejuízo líquido de 380 milhões de dólares no primeiro trimestre do ano. É nesse cenário que a chegada de uma rival que a supera em tamanho acende um sinal de alerta. “Não dá para saber ainda em quanto tempo, mas obviamente a posição da Latam vai ser contestada, especialmente quando pensa em conectividade América Latina, Brasil e Estados Unidos”, avalia Ilan Arbetman, analista de research da Ativa Investimentos. O modelo de união das duas empresas é pioneiro na América Latina e bem diferente da fusão entre TAM e Lan Chile, que juntou as empresas em uma terceira marca. No caso da nova parceria, a Gol preservará sua identidade no mercado doméstico brasileiro e a Avianca, com sua forte atuação em rotas para América Central, do Norte e Europa, também. É um processo muito parecido com o que aconteceu em conglomerados europeus como o britânico IAG, que uniu British Airways e Iberia, o franco-holandês Air France-KLM ou o Lufthansa Group, que reúne a controladora alemã a outras oito companhias, entre elas a suíça Swiss International, a vienense Austrian Airlines e a belga Brussel Airlines. “É um formato bem-sucedido em que, além do maior poder de barganha com fornecedores, as empresas passam a ter também menor sensibilidade a crises regionais”, avalia Francisco Lyra, presidente do Instituto Brasileiro de Aviação.
Para os passageiros, a retomada dos voos comerciais pós-pandemia trouxe outra novidade — ainda que pouco agradável. A situação financeira das empresas, a demanda aquecida, o alto custo do querosene de aviação e o impacto da inflação atingiram os preços das passagens com força. Em 2020, o ano mais crítico da pandemia, as tarifas domésticas tiveram queda de 14,5%, contra um aumento de 8% no ano anterior. Em 2021, os preços subiram 19,3%. Nos quatro primeiros meses de 2022, o aumento já é de 14,8%. Nesse cenário, a Gol foi a empresa que mais elevou as tarifas. Entre fevereiro de 2019 e o mesmo mês de 2022, o valor médio da passagem foi de 434 para 505 reais, um acréscimo de 17,6%. A Latam aumentou seus preços médios de 418 para 437 reais, ou 5,5%, enquanto a Azul diminuiu levemente as tarifas (que já eram mais elevadas que as das concorrentes), de 535 para 531 reais, o equivalente a uma redução de 0,8%. A arrumação que está sendo feita nos céus do Brasil é grande, mas até agora o viajante não tem muitos motivos para comemorar.
Publicado em VEJA de 25 de maio de 2022, edição nº 2790