Durou um mês o discurso do presidente Jair Bolsonaro de que a reforma da Previdência exigiria sacrifícios de toda a sociedade. A promessa foi feita em rede nacional de TV e rádio ao apresentar a proposta de emenda constitucional da reforma, em 20 de fevereiro. Mas, na quarta-feira, ao revelar o teor do projeto que trata das mudanças nos benefícios pagos aos militares, o governo começou a contrariar seu discurso: incluiu a concessão de uma série de pagamentos adicionais às carreiras militares de tal forma que, no intervalo de uma década, os gastos praticamente anulam a economia esperada com as regras mais duras de aposentadoria. Criou-se uma mentirinha: corta-se na carne, mas os militares são remunerados pelo corte.
Em números: Bolsonaro propôs economizar 97,3 bilhões de reais ao longo de dez anos com a aposentadoria dos militares, mas, ao mesmo tempo, prevê gastar 86,85 bilhões de reais a mais com a categoria. Na prática, a economia com as Forças Armadas seria de apenas 10,45 bilhões de reais, ou 1 bilhão de reais por ano. Para dar uma ideia do que isso significa, vale lembrar que a estimativa do governo é economizar 1,07 trilhão de reais com as regras mais duras de aposentadoria para trabalhadores do setor privado e servidores, como a fixação de uma idade mínima. Ou seja, a cota de sacrifício dos militares equivale a apenas 1% do que se pretende poupar, apesar de eles representarem, hoje, 7% do rombo da Previdência brasileira. Dureza.
A proposta do governo prevê, sim, normas mais duras para que os militares recebam os benefícios. O tempo mínimo de atividade para a aposentadoria subirá de trinta para 35 anos. As alíquotas de contribuição de ativos e inativos serão elevadas gradualmente dos atuais 7,5% para 10,5% em 2022. Haverá aumento da idade-limite de transferência para a reserva em todos os postos, o que, na prática, abre espaço para que militares fiquem mais tempo na ativa. Pensionistas, cabos e soldados, que atualmente não pagam nada ao sistema previdenciário, também passarão a recolher 10,5% sobre o rendimento bruto. Mas, por outro lado, a lista de benefícios proposta é longa. Um exemplo é o adicional de remuneração para quem faz cursos de aperfeiçoamento, que já existe, mas crescerá substancialmente. Oficiais-generais, coronéis e subtenentes poderão receber um extra de 73% sobre o soldo se fizerem determinados cursos, muito acima dos 30% a que têm direito hoje. Propõem-se ainda a criação de um pagamento extra, que varia de 5% a 32% do rendimento mensal, a todos os militares e um aumento na indenização quando são transferidos para a reserva de quatro para oito vezes o valor do último soldo. São belas vantagens.
Na apresentação do projeto de lei, o ministro da Economia, Paulo Guedes, recorreu ao argumento de que os integrantes das Forças Armadas não podem ser tratados da mesma forma que os trabalhadores civis e servidores, já que não acumulam FGTS nem horas extras e são proibidos de fazer greve. Embora o discurso tenha fundamento, ele foge ao ponto crucial da discussão: o Estado brasileiro não tem recursos suficientes para cumprir todas as obrigações previstas na Constituição de 1988. Simples assim. A esmagadora maioria da população, que depende de saúde e educação pública, saneamento e segurança nas ruas, já é prejudicada há anos pela falta de capacidade do poder público de dar um atendimento digno. Não se trata de entrar no mérito de se os militares merecem ou não tal tratamento, mas de entender o profundo desarranjo das contas públicas. A crítica ao projeto para os militares está no mesmo contexto da onda de indignação vista no ano passado quando ministros do STF se autoconcederam um reajuste salarial de 16,38% sob a alegação de correção das perdas com a inflação. Havia base técnica, mas totalmente descolada da realidade fiscal brasileira. Líderes partidários já mostram descontentamento com as benesses aos militares e a violação da promessa de Bolsonaro. Sacrifício remunerado não é patriotismo. Alguns estão acima de todos.
Publicado em VEJA de 27 de março de 2019, edição nº 2627
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