Alívio na inflação cria condições mais favoráveis para corte de juros pelo BC
O Brasil já começa a vislumbrar um caminho menos árido à frente. Ficaria mais fácil atingir o alvo com uma política fiscal sintonizada

Em agosto, 80 milhões de brasileiros receberam em casa a conta de luz com um desconto médio de 11,60 reais, valor que variou conforme a quantidade de eletricidade consumida. Trata-se do chamado bônus de Itaipu, um mecanismo que distribui anualmente parte dos lucros obtidos pela hidrelétrica estatal com a venda de energia. O alívio inesperado na fatura foi o grande responsável pela inflação negativa registrada no mês, segundo os dados do IPCA, o índice oficial de preços, divulgados na quarta-feira 10. Só a conta de luz recuou 4,2% em agosto, um movimento que puxou o índice para baixo. Assim, a taxa acumulada em doze meses, que havia atingido 5,5% em abril, desacelerou para 5,1%. O resultado, embora ainda distante da meta de 3%, representa um marco simbólico na árdua batalha contra a inflação persistente que castiga o país há tempos e que é a principal razão para a Selic, a taxa básica de juros, ter alcançado e permanecido nos atuais 15% ao ano.
Os sinais de uma inflação que finalmente começa a arrefecer se multiplicam e vão além do desconto temporário na conta de luz. O cenário não representa apenas um alívio para o bolso dos consumidores, que ainda enfrentam preços inflados desde a pandemia, mas também altera as expectativas sobre o futuro do processo inflacionário — condição essencial, vale reafirmar, para que o Banco Central, sob a liderança de Gabriel Galípolo, inicie o processo de redução dos juros. A diretoria da instituição volta a se reunir na próxima quarta-feira, 17, para definir o rumo da Selic. “Não é apenas uma impressão: há, de fato, vários sinais de desaceleração”, diz André Valério, economista sênior do banco Inter. “Diversos itens já apresentam queda há alguns meses, como os alimentos, e outros ainda têm espaço para recuar mais, como os bens industriais.” Eletrônicos, eletrodomésticos e veículos se enquadram nesse grupo. Já em deflação, são afetados ao mesmo tempo por custos menores, demanda em retração, câmbio mais favorável e crédito restrito pela taxa de juros elevada.
O analista do Inter integra o grupo ainda restrito dos que acreditam que o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central poderá iniciar os cortes na Selic já neste ano, em dezembro. A maioria dos economistas, no entanto, projeta que o movimento só deve começar entre janeiro e março de 2026. De qualquer forma, há um consenso amplo de que o ambiente para os preços hoje é bem mais favorável do que no momento em que Gabriel Galípolo, indicado pelo presidente Lula, assumiu o comando do BC, há apenas nove meses. No início de janeiro, uma sequência de trapalhadas do governo na área fiscal, somada à incerteza sobre até onde iria a autonomia de Galípolo, fez a confiança dos investidores ruir, provocou a disparada do dólar e minou a crença no controle de uma inflação que avançava rapidamente. “Hoje ninguém mais discute se a nova diretoria do BC pode reduzir os juros por razões políticas”, afirma Luis Otavio Leal, economista-chefe da gestora G5 Partners.

As projeções do mercado financeiro para a inflação, divulgadas semanalmente nos boletins do BC, passaram por uma sequência longa de catorze quedas consecutivas. A expectativa para o IPCA ao fim de 2025 recuou de uma média de 5,6%, no pico observado em março, para 4,8% na última semana, um sinal de que o Banco Central está agora mais próximo de trazer a inflação para abaixo do teto da meta, fixado em 4,5%. Como bônus adicional, a autoridade monetária brasileira deve contar com a ajuda do Federal Reserve (Fed), o banco central dos Estados Unidos, que está prestes a iniciar a redução dos juros. Os dirigentes do Fed também se reúnem na próxima quarta-feira para decidir sobre a taxa de referência americana, estacionada na faixa de 4,5% desde janeiro. “Juros menores nos Estados Unidos contribuem para que o Brasil possa cortar a Selic sem que isso provoque uma deterioração no câmbio”, diz Valério, do Inter.

Enquanto os analistas refazem suas projeções, os consumidores já começam a sentir, no dia a dia, alguns preços mais leves. Os alimentos, que haviam liderado os aumentos no início do ano, completaram em agosto o terceiro mês consecutivo de deflação. Arroz, azeite, café, carnes e até os ovos — transformados em “vilões” durante a recente escalada inflacionária — passaram por sucessivas remarcações para baixo nos últimos meses. “A supersafra brasileira deste ano, reforçada pelo efeito das tarifas americanas, aumentou a oferta de alimentos e ajudou a reduzir a pressão sobre os preços”, afirma André Braz, coordenador dos índices de inflação da Fundação Getulio Vargas.

A carne e o café, por exemplo, estão entre os principais produtos afetados desde agosto pela nova supertarifa de 50% imposta pelo presidente americano Donald Trump sobre mercadorias brasileiras. O recuo do dólar, que acumula queda de 12% em relação ao real desde janeiro, reforçou ainda mais o movimento de baixa. “São itens negociados no mercado internacional que vinham de cotações em alta no ano passado e que, somadas a um dólar bastante valorizado, acabaram provocando aqueles aumentos que vimos no mercado doméstico”, diz José Carlos Hausknecht, sócio-diretor da consultoria MBAgro.
O ponto de preocupação na pressão inflacionária está no setor de serviços, responsável por altas expressivas que travam uma queda mais consistente do IPCA e, em última instância, obrigam os consumidores a gastar mais para comprar a mesma cesta de bens e atividades. “Os serviços têm menos relação com o câmbio e o crédito e estão mais ligados ao emprego e à renda, que permanecem ainda em níveis muito fortes”, afirma Braz, da FGV. Nesse grupo estão restaurantes, salões de beleza, serviços de manutenção e mensalidades escolares. No acumulado de 12 meses, a inflação desses itens gira em torno de 6% — acima dos 5% do IPCA e, por ora, sem sinais claros de que haverá moderação. “Temos vários indícios de que a inflação está perdendo força, o que é uma prova cabal de que a política monetária funciona”, diz Leal, da G5 Partners. “Mas ainda há muitos dados preocupantes.” O Brasil está longe de ter vencido a batalha contra a inflação, mas já começa a vislumbrar um caminho menos árido à frente. Ficaria mais fácil atingir o alvo com uma política fiscal sintonizada.
Publicado em VEJA de 12 de setembro de 2025, edição nº 2961