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Artigo: Os desafios do Bitcoin

A utilização da criptomoeda representa uma revolução sem volta, em que as dúvidas quanto à confiabilidade da tecnologia têm se tornado cada vez mais raras

Por Rodrigo Caldas de Carvalho Borges*
Atualizado em 4 jun 2024, 15h13 - Publicado em 25 set 2020, 06h00
Bitcoin Price Trapped Below ,500
NOVA GERAÇÃO - Caixa automático de Bitcoin em Sopot, na Polônia: confiança não é mais exclusividade dos bancos – (Artur Widak/Getty Images)

Em 31 de outubro de 2008, um criptógrafo de codinome Satoshi Nakamoto publicou um trabalho denominado Bitcoin: a Peer-to-Peer Eletronic Cash System (em tradução livre, Bitcoin: um sistema eletrônico de dinheiro ponto a ponto). Na obra, o autor apresentava um sistema eletrônico para transferência de valores que trazia para o ambiente digital as características das transações realizadas com dinheiro em espécie. Dessa forma, surgia o primeiro e o mais relevante criptoativo até o momento, e que se encontra em operação há mais de dez anos, com volume de mercado de aproximadamente 212 bilhões de dólares e cotado em cerca de 11 000 dólares na última semana de agosto.

O bitcoin é um ativo ao portador cujo sistema se apoia sobre uma rede distribuída de computadores (rede bitcoin), utilizando-se de uma tecnologia específica para possibilitar a transferência eletrônica de valor (dados) sem a necessidade de um intermediário para validar as transações. Até a invenção de Satoshi não se tinha notícias de um sistema que possibilitasse a transferência eletrônica direta de valores entre duas partes sem a ocorrência do “gasto duplo”, ou seja, sem que o remetente continuasse com o dado original transferido e, consequentemente, transferisse uma cópia — resultando na duplicação do ativo. Por isso, a figura de um intermediário (um banco, o sistema PayPal) era indispensável.

A solução encontrada, chamada blockchain (cadeia de blocos), consiste de uma arquitetura digital em que as transações são agrupadas em blocos, protegidos por regras de criptografia e conectados por ordem cronológica, resultando em uma cadeia de informações. Essa arquitetura é um dos grandes fatores de segurança da rede bitcoin, uma vez que o agrupamento das transações em blocos e a vinculação cronológica entre eles tornam o sistema praticamente imutável, pois a alteração de uma transação implicaria na alteração de todas aquelas que sucederam a ela.

Além disso, a blockchain utilizada nos bitcoins é um sistema aberto e distribuído, que permite a qualquer pessoa com os equipamentos necessários baixar e rodar a rede, trabalhando na validação das transações para geração dos blocos, em um processo onde cada usuário tem uma cópia completa de toda a rede. Dessa forma, um ataque cibernético a usuários pontuais da rede não seria capaz de corromper a rede bitcoin, sendo necessário um ataque coordenado a todos os usuários, de modo que se alterassem todos os registros distribuídos entre eles. Justamente por esse motivo, a blockchain para bitcoins está em operação há mais de dez anos, sem ataque cibernético algum que tenha resultado em comprometimento do sistema.

“Sem vínculos com governos, o bitcoin não pode ser confiscado nem ser submetido a uma política econômica”

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Outra peculiaridade da blockchain do bitcoin é ser um sistema auditável, permitindo a qualquer pessoa verificar em tempo real todas as transações realizadas, com a identidade dos usuários protegida por criptografia. Portanto, ao contrário do que muitos imaginam, o bitcoin confere apenas um anonimato relativo, uma vez que todas as transações são rastreáveis. Combinado com outras tecnologias e mecanismos de verificação, isso possibilita às autoridades policiais identificar seus usuários caso necessário.

Com essas características, o bitcoin permite a transação direta entre pessoas, independentemente do conhecimento da identidade ou de informações da contraparte, e sem a necessidade de uma instituição intermediária, exatamente como ocorre nas transações com o dinheiro em espécie. Com isso, o bitcoin retirou a exclusividade do fator confiança dos bancos, ou melhor, conferiu a cada detentor de bitcoin o poder de efetuar transferências livremente, a qualquer horário, a custos irrisórios.

No entanto, o bitcoin é um ativo escasso. Isso porque, quando de sua criação, foi determinado que seriam emitidos apenas 21 milhões de unidades, as quais são geradas sempre que um bloco de transações é criado, sendo atribuídas ao responsável pela solução matemática que validou as negociações e que resultou na geração do bloco (processo conhecido como “mineração”). O sistema prevê que novas unidades serão emitidas a cerca de cada dez minutos. A depender da força computacional trabalhando na rede bitcoin, o nível de dificuldade do cálculo matemático é reajustado para que o cronograma seja respeitado.

Por se tratar de um título ao portador, custodiado pela própria blockchain, sem uma empresa, Estado ou grupo de controle, o bitcoin não pode ser confiscado por autoridades, bem como não se encontra sujeito a políticas econômicas, obedecendo unicamente às regras de emissão que foram definidas por Satoshi Nakamoto. Com o bitcoin nos tornamos os únicos responsáveis pelas nossas atitudes e os únicos responsáveis pelo controle das nossas riquezas, de forma absolutamente independente.

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Diante desse cenário, analistas financeiros discutem sobre eventuais fragilidades da criptomoeda, como natureza, ausência de lastro, emissão por ente privado, falta de um órgão centralizador e ausência de regulação, mas poucos ousam questionar a cotação do bitcoin. O preço do bitcoin é determinado pela demanda, tendo alcançado sua máxima histórica em dezembro de 2017, quando se aproximou dos 20 000 dólares. De lá para cá, a cotação do bitcoin passou por altos e baixos, tendo sua morte anunciada por muitos economistas quando chegou à casa dos 3 000 dólares — posteriormente, avançou em um processo de recuperação até se estabilizar, recentemente, pouco acima dos 10 000 dólares. Ninguém sabe ao certo se o valor de cotação está mensurado corretamente, ou se vai subir ou descer. Mas, do ponto de vista social, tecnológico, econômico e jurídico, podemos afirmar que o bitcoin representa um mecanismo que continuará se desenvolvendo, independente do seu valor, como ocorre desde 2009.

Nos últimos anos o bitcoin experimentou toda sorte de críticas, em sua maioria decorrentes do mau uso da tecnologia, e não das suas características propriamente ditas. Nesse cenário, muitos, talvez pela falta de conhecimento, preferiram culpar a tecnologia. Com o passar do tempo, porém, têm se tornado cada vez mais raros os questionamentos quanto à confiabilidade da tecnologia e às inovações trazidas. Recentemente, plataformas de investimento passaram a listar fundos de bitcoin, deixando clara a confiança do próprio setor financeiro em relação a essa nova classe de ativo.

Em 2019, a Receita Federal publicou regulamentação específica para o tratamento tributário das operações com bitcoin, além da definição de padrões mínimos de compliance (atendimento a regulações) a ser adotados por empresas do setor. Tal fato é acompanhado de diversos projetos de lei, tanto na Câmara dos Deputados quanto no Senado, para regulação do bitcoin, o que poderá contribuir para o crescimento e a valorização desse ativo.

Apesar da desconfiança inicial e do desconhecimento por parte do grande público, o bitcoin veio para ficar e continuará a operar de forma distribuída, sem entidade controladora e conferindo liberdade aos seus usuários. Trata-se de uma consequência direta do trabalho em rede, na qual as regras são as mesmas para todos, as informações são transparentes, o poder é distribuído e boas ideias são facilmente executadas, financiadas e recompensadas.

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* Rodrigo Caldas de Carvalho Borges é advogado do CB Associados e membro da Oxford Blockchain Foundation

Publicado em VEJA de 30 de setembro de 2020, edição nº 2706

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