As novas pressões que Paulo Guedes enfrenta no governo Bolsonaro
Por que a divergência entre ministro e presidente fomentou — mais uma vez — uma forte boataria sobre a demissão do chefe da Economia
Faltava pouco para o meio-dia de quarta-feira 26, quando o presidente Jair Bolsonaro decidiu dar uma chamada pública no ministro da Economia, Paulo Guedes. Ele não gostou do programa Renda Brasil — o substituto do Bolsa Família desenhado pela equipe econômica — e decidiu deixar isso muito claro para quem acompanhava sua participação num evento da siderúrgica Usiminas. “Ontem, discutimos a possível proposta do Renda Brasil. Eu falei que está suspensa. A proposta da forma como apareceu para mim não será enviada ao Parlamento”, disse. “Não posso tirar de pobre para dar ao paupérrimo.” Que Bolsonaro não gostara do programa, já era sabido, e há muito. Ele rejeitou o valor médio de 247 reais e o fim do abono salarial para compensar o aumento orçamentário do programa. Minutos depois, um boato correu pelos grupos de WhatsApp de corretores e gestores do mercado financeiro. Guedes teria pedido demissão, diziam. Num ambiente de extrema pressão por resultados, como no mercado financeiro, qualquer sussurro se amplifica, e os investidores deixaram evidente toda sua preocupação com a possível concretização daquele boato. Em menos de duas horas, o Ibovespa, principal índice de ações da B3, despencou 2,5%. Para colocar em termos claros, foram destruídos 95 bilhões de reais em valor das companhias.
Guedes, que não viu nada de mais na declaração de Bolsonaro, a não ser a cobrança de um chefe, continuou o dia normalmente. Conversou com representantes da indústria da construção civil e, depois, com secretários estaduais de Fazenda sobre a reforma tributária. Sobrou para alguns ministros e assessores do Posto Ipiranga virem a público desmentir o que corria à boca pequena. “Quase diariamente pessoas ficam especulando uma possível saída do ministro Guedes. Acho que tem muita gente ‘entubada’ em dólar e que está tendo algum benefício com essas crises. O presidente da República discordar da Economia sobre o valor do Renda Brasil não significa ‘fritura’ do ministro”, afirmou o chefe das Comunicações, Fábio Faria. O que ninguém conseguiu responder, contudo, foi de onde surgiu o boato.
Não é de hoje que Guedes encontra resistência de colegas da Esplanada dos Ministérios. A maior delas está no outro lado da rua, no prédio do Desenvolvimento Regional, ocupado por Rogério Marinho, que curiosamente foi seu secretário de Previdência e Trabalho. Desde que foi promovido ao primeiro escalão do Executivo, o ex-deputado pelo Rio Grande do Norte passou a trilhar um caminho oposto ao de Guedes. Articulou a criação do programa de investimentos públicos Pró-Brasil e encontrou no desenvolvimentismo militar seu principal fiador. No Palácio do Planalto, inclusive, só mesmo no gabinete da Presidência é que Guedes encontra um bom ouvinte. Nas salas próximas, ocupadas pelos ministros da Casa Civil, Walter Braga Netto, e da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, os comentários sobre a atuação do chefe da Economia não são lá muito positivos. Diuturnamente, sopram nos ouvidos do presidente sobre como Guedes perdeu relevância durante o enfrentamento da pandemia de Covid-19 e que, com vistas ao processo eleitoral de 2022, o plano liberal do “superministro” joga contra as pretensões de Bolsonaro. Os argumentos dos militares são claros: as reformas administrativa e tributária, as PECs do Pacto Federativo e Emergencial têm um evidente objetivo de reequilibrar a riqueza no país. Quem votou em Bolsonaro em 2018, as classes alta e média, além de investidores viciados na renda dos títulos do Tesouro, tende a perder nesse processo. Para engrossar o argumento militarista, o dólar disparou, frustrando justamente esse grupo de eleitores. A saída para garantir a permanência no poder até 2026 aparece no aumento da popularidade entre as classes mais baixas, fruto da criação do auxílio emergencial. E aqui é onde a velha política e as antigas práticas populistas ganham espaço para se exibir. Programas assistencialistas, planos de geração de emprego de baixa renda e construção de moradias subsidiadas são, de acordo com essa visão simplista e equivocada, extremamente bem-vindos. Guedes, que segura como pode o teto de gastos, é um complicador nessa estratégia — e isso é positivo.
Dentro do Ministério da Economia o diagnóstico é de que não há nenhum acirramento de ânimos entre Guedes e Bolsonaro e que o alvoroço nos mercados não afeta a relação entre os dois. O ministro repete a quem quiser ouvir que só deixará a pasta quando Bolsonaro determinar. Apesar disso, ele deverá pesar sua permanência no governo ao fim do ano, quando fará uma avaliação das perspectivas de manter a agenda reformista. Há um motivo para isso. Guedes é extremamente apegado a suas ideias e quer colocar seu nome na história econômica do país ao deixar um legado que nenhum liberal conseguiu. Roberto Campos e Mário Henrique Simonsen, dois proeminentes adeptos da escola liberal e que trabalharam com os militares durante a ditadura, ajudaram a sedimentar ideias importantíssimas que até hoje permeiam o pensamento nas principais faculdades de economia do país. Mas o legado prático não aconteceu, uma vez que tanto Castello Branco — o chefe de Campos — quanto Ernesto Geisel — o de Simonsen — abandonaram o ideário liberal para abraçar o desenvolvimentismo.
Inadvertidamente, opositores de Guedes já ventilam possíveis substitutos para o seu lugar. Embora Rogério Marinho tenha imenso apreço pela cadeira mais poderosa da economia brasileira, seu nome não está entre os potenciais sucessores. O substituto precisa agradar ao mercado. Roberto Campos Neto, presidente do BC, seria um sucessor natural, mas o “chefe da moeda” já avisou que, se Guedes sair, ele sairá junto. Outro que agrada e que até já recebeu apelido de PG2 é o presidente da Caixa, Pedro Guimarães, em uma brincadeira com o fato de ter as mesmas iniciais de Guedes. Lobo solitário, ganhou proeminência no Planalto ao colocar de pé, da noite para o dia, os programas de auxílio à renda e manutenção do emprego. “O mercado financeiro entendeu que o momento do Bolsonaro é outro, que ele virou a chave. O liberalismo do Guedes não é mais um porto seguro, e por isso cobra o abandono da pauta vendida nas eleições”, afirma André Perfeito, sócio da corretora Necton. Ninguém, obviamente, é insubstituível. Porém, uma eventual saída de Guedes e o comprometimento da agenda econômica que sustentou o mandato de Bolsonaro terão impactos imprevisíveis sobre o seu governo. Muito piores do que a saída de Sergio Moro e Luiz Henrique Mandetta.
Publicado em VEJA de 2 de setembro de 2020, edição nº 2702